Uma das empresas mais bem posicionadas para aproveitar o nascente mercado de carros voadores é a brasileira Embraer. Ela criou uma empresa separada, a Eve, para desenvolver um e-VTOL, veículo elétrico capaz de decolar e pousar verticalmente, sem necessidade de uma pista extensa. Em fevereiro de 2022, iniciou o processo de obtenção de um certificado de tipo para seu projeto, a ser concedido pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). É o primeiro passo para poder voar nos céus do país — e, em breve, do mundo.
No Brasil, a Embraer já considera um serviço de táxi entre a Barra da Tijuca e o aeroporto internacional Tom Jobim, no Rio de Janeiro, em parceria com a Flapper, uma firma de voos por demanda, a um custo estimado de 100 reais por passageiro. Lá fora, a empresa firmou em dezembro do ano passado uma parceria com a australiana Sydney Seaplanes para um serviço de táxi na cidade. A encomenda inicial foi de 50 aparelhos, a partir de 2026.
Mais significativo foi o acordo com a empresa de leasing Azorra, firmado também em dezembro, segundo o qual a empresa americana vai não apenas encomendar 200 aeronaves, como também fornecer a infraestrutura necessária para seu funcionamento. No total, a Embraer já tem 1.735 pedidos para seus e-VTOLs.
A empresa brasileira também já tem um acordo com uma empresa de propósito especial (Spac, na sigla em inglês), a Zanite, para facilitar sua abertura de capital, que deve ocorrer neste ano. Em tese, a Eve está avaliada em 2,4 bilhões de dólares, sendo 82% do capital pertencentes à Embraer.
A empresa brasileira tem algumas claras vantagens neste mercado que se forma. “Temos mais experiência em certificação de aeronaves que os concorrentes. Temos um conhecimento em fabricar aviões. Os concorrentes não têm. Muitos deles são startups. Temos também uma área de serviço distribuída no mundo todo que pode atender a Eve. Achamos que estamos muito bem posicionados e vamos, sim, ter sucesso com esse produto”, afirmou Francisco Gomes Neto, presidente da Embraer, ao jornal O Estado de S. Paulo, no início de fevereiro.
Não são os únicos, obviamente. Sua ex-futura sócia, a Boeing, vai concorrer no mesmo mercado. Em janeiro, a empresa americana anunciou que vai investir mais de 450 milhões de dólares no desenvolvimento de carros voadores autônomos da startup Wisk — que ela própria controla em conjunto com a Kitty Hawk de Larry Page, cofundador do Google. O carro voador da Wisk, apelidado de Cora, já está em testes na Nova Zelândia há quatro anos.
A diferença é que a Wisk já sairá com o projeto de um veículo autônomo, ou seja, sem necessidade de piloto. A Boeing encara essa aposta como uma vantagem estratégica. Mas pode ser uma desvantagem, ao menos no início, pelos desafios extras de regulação e de vencer a desconfiança do público.
De acordo com a consultoria AMR, o segmento de veículos voadores pilotados por humanos terá mais de 75% de participação de mercado em 2025, mas os veículos autônomos crescerão mais rapidamente nos dez anos seguintes. A estratégia da Embraer parece ser de começar pelos veículos pilotados e migrar para os autônomos mais tarde.
Vai tudo pelos ares
Acostumadas a um mercado com poucos competidores, Boeing e Embraer terão pela frente um cenário muito diferente, pelo menos no início dessa nova indústria. A concorrência será bastante variada, como se pode ver por estes exemplos:
= AeroMobil, uma empresa fundada pelo mesmo Stefan Klein do AirCar, um inventor que busca desenvolver carros voadores desde os anos 1980. Klein se decepcionou com outros sócios e fundou a Klein Vision em 2016. Mas a AeroMobil ainda planeja lançar um e-VTOL.
= Volocopter, uma empresa alemã que atraiu investimentos da Daimler, dona da Mercedes-Benz, além da fábrica de chips americana Intel. Ela faz protótipos de táxis elétricos autônomos desde 2016 e recebeu permissão para voo. Em 2017, o executivo-chefe da Intel, Brian Krzanich, voou num desses protótipos, pilotado da terra por outra pessoa (como um drone).
= Lilium, outra empresa alemã, cujo protótipo fez seu voo de estreia em maio passado. Seu veículo é equipado com 36 motores elétricos e pode levar sete pessoas a 3.000 metros de altura, com autonomia de 250 quilômetros. Ela já tem uma entrada no Brasil: a companhia aérea Azul anunciou em agosto a intenção de compra de 220 aparelhos, a partir de 2025. A ideia, segundo a empresa, é conectar centros econômicos, cidades, aeroportos e até condomínios residenciais.
= eHang, uma fábrica chinesa que anunciou suas primeiras máquinas voadoras em 2016. Ela divulgou no final de janeiro um acordo de venda de 50 unidades de táxi aéreo para a empresa japonesa AirX, especializada em transporte por helicóptero. O modelo em questão tem 16 motores elétricos e carrega duas pessoas, podendo voar por cerca de 35 quilômetros. Mas a empresa já trabalha em outros modelos, para atingir distâncias maiores.
= NFT, uma startup de um casal israelense. A empresa projetou o veículo Asaka (pássaro voador, em japonês), mais ao estilo do AirCar, um carro que roda e voa. Ele tem asas retráteis, mas precisa de apenas 25 metros de espaço para decolar. Por enquanto, o projeto só existe no papel. Os primeiros testes de voo estão prometidos para este ano e a produção em série, para 2026. Em vez de táxi aéreo, seu público-alvo é de “pessoas que querem viver longe das cidades grandes e caras e voar para lá quando for necessário”, segundo seu inventor, Guy Kaplinsky, disse em sua apresentação.
= a3, a unidade de projetos especiais da empresa aeronáutica Airbus. Ela desenvolve o Vahana, um aparelho com quatro asas com propulsores rotatórios que ficam na vertical, para decolar, e depois podem impulsionar a nave para a frente.
= Liberty, uma empresa holandesa, criadora do PAL-V. Parece um helicóptero com rodas, mas é o que se chama de autogiro: a hélice de cima não tem motor, ela se move impulsionada pelo vento provocado pelo propulsor traseiro. Não é um e-VTOL, portanto, e precisa de espaço para decolar. Ele já tem licença para trafegar nas estradas da Europa – falta a licença para voar.
= Bellwether, uma empresa britânica que trabalha no Antelope, outro e-VTOL. Em fevereiro, a empresa anunciou ter tido sucesso no voo de seu protótipo em Dubai, realizado em novembro. O plano é que o veículo seja capaz de transportar quatro ou cinco pessoas e esteja disponível para voos sob demanda a partir de 2028 e para consumidores privados dois anos depois.
O fato de haver muitas iniciativas não significa, no entanto, que haverá tantas opções. O mais comum nesse segmento é que os projetos nunca saiam do papel — ou do protótipo. No ano passado, Erin Marquis, a então editora do site Jalopnik, especializado em notícias sobre a indústria automobilística, fez um levantamento de como estão os projetos de carros voadores que apareceram em suas páginas nos últimos dez anos. Na lista está o Samson Switchblade, um carro esportivo que deveria ter começado a ser vendido em 2018. Está também o Kitty Hawk Flyer, de Larry Page, que abandonou a pretensão de ser um carro voador e agora é apresentado como um ultraleve elétrico, cujo site também não está aceitando encomendas. E o Uber Elevate, projeto anunciado em 2017, anunciado novamente em 2018 e discretamente deixado de lado em 2020, quando a unidade responsável por sua produção foi vendida para a Joby Aviation. E o táxi voador, da Joby, um conceito que arrecadou 100 milhões de dólares em investimentos da Toyota, Jet Blue e Intel, mas que até agora não saiu do papel (embora prometa um veículo com capacidade para cinco pessoas em 2024).
A lista de decepções tem ainda o S-A1 da coreana Hyundai, que estava no projeto com o Uber e agora anuncia um conceito próprio de aparelho de mobilidade aérea urbana; o SD-03, da startup japonesa SkyDrive, prometido para o meio da década; um carro conceito da Renault, o AIR4, definido pela própria empresa como uma ideia de como o carro voador pode parecer… daqui a 60 anos; e um e-VTOL da Cadillac, uma divisão da General Motors, que não aparece mais nem no site de projetos da empresa.
Quem vai sobrar?
Se a história do automóvel serve como guia, o mais provável é que, das centenas de empresas dedicadas aos projetos de máquinas voadoras, sobrem algumas poucas. No caso da indústria automobilística, as vencedoras foram empresas que já tinham alguma experiência prévia — fosse na fabricação de bicicletas, fosse na de carroças ou, mais frequentemente, de motores.
Algumas startups deverão abocanhar nichos de mercado, como o AirCar ou o Jetson One, um e-VTOL da empresa sueco-polonesa Jetson (homenagem ao desenho animado) que já aceita encomendas para entregar seu carro voador de um único lugar no ano que vem (custa 92.000 dólares, e a empresa tem planos de desenvolver máquinas para dois passageiros daqui a quatro anos).
O grosso das vendas, entretanto, deverá ser das companhias já estabelecidas. E é fácil entender por quê: este não é um mercado que nascerá de uma ruptura tecnológica (do tipo que normalmente dá oportunidades a novos protagonistas). Tecnologia para criar carros voadores já existe há décadas. O que falta resolver são problemas de regulação. Vai sair na frente, portanto, quem tiver mais traquejo para driblar questões burocráticas, mais experiência política. Um pouco mais à frente, quando o mercado estiver mais maduro e os modelos convergirem (da mesma forma que os carros hoje são todos parecidos entre si), vai contar a organização produtiva, a capacidade técnica e fabril, a habilidade em fazer parcerias.
Tanto no começo quanto mais para a frente, a Embraer tem as qualidades necessárias para fazer sucesso — pelo menos do ponto de vista industrial. Um dado interessante desse nascente mercado é que ninguém está pensando em simplesmente construir os veículos. Todas as empresas buscam desenvolver os produtos e os serviços: ter o aeroplano e ter a companhia aérea que o explora comercialmente.
Assim como na parte técnica, o modelo de negócios envolverá um aprendizado para as empresas.