Quase 80% dos municípios brasileiros enfrentavam algum grau de estiagem em setembro, o último mês da estação seca no país. Dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) apontam que sete (0,12%) cidades registram seca extrema, 453 (8,13%) severa, 1.424 (25,56%) moderada e 2.416 (43,36%) fraca. As condições de seca se intensificaram no sul e sudoeste de Mato Grosso, no sudoeste de Mato Grosso do Sul, no norte do Rio de Janeiro e na Bahia, enquanto a estiagem perdeu força no Norte, sobretudo no Acre, no Amazonas e em Roraima. Em outubro, o período chuvoso teve um primeiro mês de pancadas em todas as regiões do país, que garantiram certa estabilidade aos já debilitados reservatórios, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
Contudo, o último relatório do Monitoramento das Secas do Cemaden, de 18 de outubro, traz um alerta: há mais de 70% de probabilidade de ter La Niña – fenômeno climático que ocorre quando há o resfriamento das águas superficiais do oceano Pacífico – neste verão do Hemisfério Sul, com expectativa de início em outubro ou novembro. Períodos de La Niña geralmente resultam em menos chuvas para as regiões central e sul do Brasil, onde estão situados importantes reservatórios para produção de energia e abastecimento da população. Mas ainda é cedo para saber que impacto terá na precipitação no país entre dezembro e fevereiro.
A equação da crise hídrica atual, a pior em 91 anos, é composta por fenômenos meteorológicos, emergência climática, impactos das ações humanas nos biomas, gestão ineficiente da água e ausência de políticas ambientais eficazes.
Depois das crises de 2001 e 2013-14, a história se repete em 2021. “E a mesma pergunta que faziam em 2001 e 2014 está sendo feita agora: o clima está mudando?”, observa José Marengo, coordenador geral de pesquisas e desenvolvimento do Cemaden, em entrevista à reportagem. “Neste ano, o Centro da América do Sul, que inclui o Pantanal, o Sul da Amazônia e parte da Bacia do Paraná, está se comportando como se fosse só uma, com seca severa, extrema ou excepcional.”
A Floresta Amazônica é uma fonte importante das chuvas que caem Brasil adentro, mas o clima já dá sinais de mudanças. Um estudo de Marengo identificou a ocorrência de seis eventos climáticos extremos entre 2000 e 2018. Em 2005, 2010, 2015-2016 aconteceram secas extremas associadas às altas temperaturas na faixa tropical do oceano Atlântico Norte, as duas últimas também influenciadas pelo El Niño. Em 2009, 2012 e 2014 teve chuvas torrenciais que resultaram em inundações. O aquecimento do Atlântico Sul Tropical provocou as duas primeiras, sendo que a segunda contou com influência de La Niña. A última, por sua vez, resultou de uma combinação entre o aquecimento do oceano Indo-Pacífico e do Atlântico Sul Subtropical. Extremos de chuva, sob influência da La Niña de 2020, provocaram uma cheia histórica do rio Negro, que alcançou em junho deste ano o maior volume da série histórica, com 30,02 metros. “Os extremos estão ficando mais frequentes e intensos. Se a variabilidade antes era uma, agora é assim e a população está cada vez mais vulnerável”, ressalta o meteorologista e climatologista.
As causas são meteorológicas, continua Marengo. “Na Amazônia, os ventos alísios, o transporte de umidade e a convecção [o ar que ascende] produzem as chuvas”, explica. “Mas, se o Atlântico Norte Tropical fica muito quente, a região de chuvas tende a mudar para o norte, para fora da Amazônia – onde falta água, começa a esquentar, o solo fica seco. Ou tem El Niño. Ou ainda, nas águas quentes do Pacífico ocorre a convecção – a ascensão do ar cruza os Andes e desce sobre a Amazônia, às vezes também no Nordeste, e não permite a formação de chuva.”
Se os extremos climáticos são fenômenos naturais, as ações humanas podem afetar como estão se comportando, acredita Marengo. “O desmatamento seria um sinal que, no longo prazo, poderia explicar uma tendência de redução na precipitação. Algo assim já está acontecendo no sudeste da Amazônia. Mas atribuí-lo a causador de um extremo meteorológico seria simplificar demais”, observa. “O que podemos atribuir a um extremo climático é a atividade humana, com as emissões de gases de efeito estufa (GEE) que podem, de certa forma, acelerar o ciclo hidrológico.”
Uso e mudanças da cobertura do solo e a agropecuária correspondem a 72% das emissões de GEE no Brasil, segundo o Observatório do Clima. São elementos que contribuem para agravar a crise climática, que, por sua vez, intensifica o aquecimento dos oceanos e a incidência de fenômenos como El Niño e La Niña.
“Quando se muda uma vegetação, o ciclo hidrológico é alterado. A floresta transpira e evapora diferente do que um campo de soja”, explica Marengo. “O ciclo hidrológico depende de umidade e ventos. Se a circulação atmosférica é um processo natural, a ação humana poderia ter justamente contribuição na umidade, que vem como consequências de mudanças na cobertura e uso do solo. Esse é um processo gradativo. Temos que monitorar.”
O sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) classificou como “inquestionável” a influência das ações antrópicas nos efeitos do aquecimento global já enfrentados no mundo, por exemplo, por meio do desmatamento e da queima de combustíveis fósseis. Os humanos são responsáveis por 1,07ºC do 1,09ºC de aumento de temperatura em relação aos níveis pré-industriais (1850-1900), segundo o IPCC. O painel atribuiu alto e médio grau de confiança sobre a contribuição humana para os extremos de calor mais intensos e frequentes em praticamente toda a América do Sul.
Impactos antrópicos
A ecóloga Erika Berenguer trabalhava em campo em uma área de estudo permanente de Santarém, no Pará, quando tudo começou a queimar. A região é a porta de entrada da umidade que vem do Atlântico e se transforma nos rios voadores que percorrem boa parte da América do Sul, mas foi assolada pela seca extrema impulsionada pelo El Niño e agravada pelas queimadas. “Você não enxergava a cinco metros de distância”, lembra Berenguer, pesquisadora das universidades de Oxford e de Lancaster, no Reino Unido. “Fedia a fumaça, era horroroso. E as nossas parcelas queimaram.”
Berenguer estudava aquela porção da Amazônia havia cinco anos. Com isso, conseguiu fazer uma análise da floresta antes e depois do fogo – algo então inédito na ciência do bioma, em um estudo publicado em 2018.
“Vimos que depois do fogo as árvores que sobrevivem crescem descomunalmente. Em um ano, uma espécie de rápido crescimento cresce dois centímetros. Tive espécie aqui cresceu 12 centímetros”, observa Berenguer. “No entanto, o que achamos no estudo é que esse crescimento não foi o suficiente para compensar toda a perda de carbono por causa da morte das árvores pelo fogo. Só 37% das emissões foram compensadas em três anos.”
O fogo na Amazônia tem relação direta com as transformações antrópicas no bioma e as mudanças climáticas. Segundo o MapBiomas, 16,4% do bioma sofreu com queimadas desde 1985. Em anos sem fenômenos climáticos, as taxas de desmatamento e fogo se equivalem. Já em anos de seca extrema, as queimadas compreendem áreas bem maiores, conforme um estudo de Luiz Aragão, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
“Na Amazônia, as folhas no chão são muito úmidas, o fogo entra um pouquinho e morre. Mas as secas aumentam a vulnerabilidade da floresta ao fogo. Se o fogo escapar do pasto, do desmatamento, e entrar na mata, a floresta não barra, não funciona mais como um tampão”, analisa Berenguer. “Foi o que aconteceu em 2015 em Santarém, quando um milhão de hectares queimaram. Em uma seca extrema, o fogo conseguiu entrar na floresta e se espalhar.” Além de aumentar as emissões, continua Berenguer, o desmatamento e o fogo deixam a floresta no entorno mais secas e quentes, provocando um efeito climático local.
Luciana Gatti, do Inpe, estudou a relação entre o balanço de carbono, o desmatamento, a precipitação e a temperatura em diferentes pontos da Amazônia. Entre 2010 e 2018, Gatti descobriu que houve queda de precipitação e alta nas temperaturas em todas as regiões analisadas.
No nordeste da Amazônia, 31% da vegetação foi suprimida, a temperatura aumentou em 1,9ºC e houve queda de 34% das chuvas entre agosto e outubro, época do pico da evapotranspiração das árvores. O Sudeste, onde 26% da cobertura florestal foi suprimida, registrou 2,5ºC de alta e 24% a menos de precipitação. No Sudoeste, que já perdeu 13% de florestas, a temperatura cresceu 1,7ºC e caem 20% menos chuvas. No Noroeste, onde 7% foi desmatado, teve 19% menos pancadas de chuvas e está 1,6ºC mais quente. O leste da Amazônia já emite mais carbono do que é capaz de absorver.
Marengo identificou que desde 1976 a estação seca no sul da Amazônia já está um mês mais longa, resultado do aquecimento das águas do Atlântico Tropical e do enfraquecimento do fluxo de vapor d’água. As chuvas na região têm iniciado mais tarde, o que deixa a floresta mais vulnerável às queimadas.
“O pico da estação de fogo no Brasil é em setembro, mas, se tiver uma estação seca mais longa, pode se estender até outubro. A agricultura, os rios, tudo está adaptado às chuvas que começam em outubro”, analisa Marengo. “Muitas vezes a chuva vem tarde demais, não vem no momento certo. Os reservatórios deveriam começar a encher em outubro, mas às vezes as chuvas intensas só vêm em janeiro e, no lugar de ajudar, produzem extremos que causam desastres e matam pessoas.”
Marengo esteve entre os cientistas que constataram o fenômeno dos rios voadores na Amazônia em meados dos anos 2000. São jatos de baixos níveis, uma corrente de vento muito rápida que compõe a monção. A umidade que evapora do Atlântico Tropical entra no nordeste da Amazônia por meio dos ventos alísios. Conforme avança pela floresta, as chuvas caem e as árvores devolvem parte deste vapor para a atmosfera, através da evapotranspiração. Um alto volume de umidade chega ao sudoeste da Amazônia, onde encontra a Cordilheira dos Andes e é redirecionado para o Sudeste do Brasil e espalha-se pelo continente. “O conteúdo de vapor da atmosfera, que é alimentado pela evapotranspiração das árvores, é similar, ou talvez um pouquinho maior, do que a vazão do rio Amazonas quando chega no Atlântico”, observa Marengo. Não se sabe a proporção da contribuição de umidade oriundas do Atlântico e da floresta, mas o desmatamento pode diminuir o volume de água transportado pelos rios voadores.
“Os rios voadores estão ficando cada vez mais irregulares. Na estação seca, a frequência é pequena. Em um clima normal, deveríamos começar a vê-los a partir de outubro, novembro. Mas nossa preocupação agora é que as chuvas comecem mais tarde”, analisa Marengo. “E aí os rios voadores estariam atrasados, as frentes frias do Sul também. Ou entram muito rápido e soltam uma chuva muito intensa, mas insuficiente para encher reservatório. E muitas vezes a chuva cai no lugar errado – na região metropolitana de São Paulo, e não onde está o Sistema Cantareira. Essa é a característica de um clima que muda.”
Pantanal mais seco
O suor escorre pelo rosto enquanto Jorge Correa da Costa, 86, ajeita o chapéu e olha para o fundo do poço junto com seus filhos e o neto. A família vive em um sítio a 500 metros do lago Buritizal, formado pela Baía de Chacororé, no município de Barão de Melgaço, no Pantanal matogrossense. “Olha aí o tanto de barro que já tiramos” , diz o agricultor, apontando para a terra úmida amontoada ao lado do reservatório rudimentar, construído com três galhos cortados, uma polia e o balde de alumínio, que desce amarrado em uma corda até alcançar a água. Três dias antes, o pantaneiro, acostumado com a paisagem da maior planície inundável do planeta, não contava com uma gota sequer em casa. “A gente tem um poço artesiano da comunidade, mas tá muito seco e a bomba queimou. Então decidimos tentar cavar aqui. Conseguimos subir três baldes de água para tomar banho, cozinhar e lavar algumas coisas”, conta um dos filhos de Jorge, que leva o mesmo nome do pai.
Chacororé é a principal baía formada pelo rio Cuiabá, no Pantanal, e a terceira maior do bioma. Dados do Instituto Centro de Vida e da Universidade do Estado de Mato Grosso apontam que o complexo perdeu 60% de sua superfície alagada entre 2016 e 2020. “Nós soltamos os animais do sítio no que resta de água na baía, porque se deixar aqui vão morrer. Muitos acabam atolando na lama que restou ou morrem de fome e sede no caminho. Os bichos estão fracos e aqui nem mandioca cresce mais”, diz Jorge Filho.
Em alguns pontos da baía a água chegou a retroceder dois quilômetros, deixando a paisagem irreconhecível, com o gado avançando sobre o que antes era um berçário de peixes, jacarés e outros animais que buscam águas calmas no período de reprodução. A vegetação amarelada pela estiagem ainda se recupera da devastação causada pelos incêndios de 2020, que calcinaram 30% do bioma.
Cerca de 200 quilômetros ao leste de Chacororé, um fio de nylon mergulha nas águas verdes do rio Paraguai, na cidade de Cáceres. A linha, imóvel, está amarrada na ponta de um galho fincado na areia por José Carlos Moia, de 65 anos. “Cheguei aqui às cinco da manhã e até agora nada de peixe.” O rio baixou tanto que o ribeirinho, acostumado a pescar no barranco nos fundos de casa, teve que descer para uma pequena praia formada pelo recuo das águas. “Nunca vi o rio desse jeito. Tem dois anos que não está chovendo direito. Quando cheguei aqui, com oito anos de idade, era chuva dia e noite. Era tanta água que você não conseguia nem sair de casa. Hoje não tem mais essa invernada. O povo vai desmatando aí pra cima e a chuva vai se afastando. Se você sair daqui e ir até a Bolívia, vai ver, é só pasto”.
O Pantanal tem uma estação chuvosa bem definida no verão. Precisa chover na média todos os meses, de novembro a março, para que a vegetação utilize a reserva de água durante o outono e o inverno. Para isso, o bioma depende da umidade dos rios voadores, das frentes frias do Sul e da evapotranspiração de suas áreas alagadas.
“Em 2019, 2020 e 2021 choveu de 50% a 60% a menos que o normal no verão. Como chove pouco, as reservas de água acabam rapidamente. E aí tem um balanço hídrico negativo, a vegetação seca, um ar mais seco e quente”, observa Marengo, que publicou em abril um estudo sobre o tema.
“Esses verões mais fracos [de chuva] significam que as frentes frias do sul e a umidade da Amazônia não conseguiram passar como deveriam. Os rios voadores ou eram fracos, ou não conseguiam entrar no Pantanal e eram levados para outros lugares”, analisa Marengo. “Junto com a seca de 2020 no Pantanal, registrou-se uma onda de calor em setembro e outubro do mesmo ano em toda essa região. É o que o IPCC afirma que pode ser mais comum: não é um evento simples, mas uma combinação de extremos.” Em setembro deste ano, novas ondas de calor já se somaram à estiagem no Pantanal.
Sudeste em alerta
Principal fonte de água para os 21,5 milhões de habitantes da região metropolitana de São Paulo, o Cantareira está sofrendo: terminou setembro com 30,4% do volume útil. Oito anos atrás, no fim da estação seca que antecedeu a crise hídrica de 2014 a 2016, o volume era de 40,3%.
A garoa caía e parava ao longo de 7 de outubro nos municípios banhados pelo Sistema Cantareira, em volume insuficiente para elevar o nível dos sete reservatórios. Em uma das pontas do rio Jaguari, no município paulista de Piracaia, o que era para ser um trecho da primeira represa virou um tapete verde de vegetação que brotou do leito seco. Os pássaros pousavam apenas em um raso e curto espelho d’água que sobreviveu à estiagem, naquela região rodeada por pastos e fragmentos de Mata Atlântica.
A imagem permanece chocante em uma área na represa do Jaguari na cidade de Joanópolis: um paredão de terra em uma das pontas evidencia que o lago está aproximadamente 10 metros abaixo do nível normal. Mas o cenário no entorno, com uma Mata Atlântica exuberante, evita uma situação ainda mais extrema. Ali, o dono de duas propriedades aderiu ao programa de restauração florestal da SOS Mata Atlântica para ampliar a cobertura da mata ciliar. A nova vegetação, plantada há cinco anos, juntou-se aos esforços da mata nativa e já passa a desempenhar seus serviços ecossistêmicos.
“Essa floresta, com toda essa conectividade, embora ainda baixa, faz o efeito de esponja – a principal função da Mata Atlântica. Ela segura os rios voadores, retém a umidade do ar no período de seca. Durante a noite, essa umidade, o orvalho, infiltra lentamente no solo e o mantém vivo; reabastece as nascentes e as mantém perenes durante essas variações climáticas”, explica Malu Ribeiro, diretora de Políticas Públicas da SOS Mata Atlântica e especialista em recursos hídricos, enquanto realiza análise da qualidade da água naquele ponto da represa. “No período de chuva e temporais, a floresta evita a erosão, o carreamento do solo fértil e o assoreamento do rio e impede a poluição difusa. A floresta é uma mantenedora do ciclo hidrológico.”
Na crise de 2014-16, quando o Cantareira chegou ao volume morto, a SOS Mata Atlântica alertou para um grande déficit de cobertura florestal na Bacia do Cantareira – apenas 20%, que se espalhavam em fragmentos, sem muita conectividade entre as áreas de preservação permanente (APPs). Após mapeamento por satélite, a fundação identificou as áreas prioritárias para restauração florestal e iniciou um trabalho de propriedade em propriedade, em busca de interessados em regenerar a mata.
Primeiro, a fundação ofereceu um milhão de mudas, mas praticamente ninguém se interessava. Na briga pela implementação do Código Florestal, muitos ainda não sabiam se teriam de cumprir a legislação, ou se a faixa protetiva das APPs seria reduzida. Até que a escassez de água assustou e despertou a consciência em muitos deles. Hoje, a SOS Mata Atlântica já plantou 1,3 milhão de mudas nativas nos oito municípios da Bacia do Cantareira.
O Cantareira se recuperou muito pouco após a crise de 2014-16. Ainda não estabilizou em 80% do volume nos períodos chuvosos. Nos primeiros 20 dias de outubro, já caiu 102,9 mm de chuva, enquanto a média histórica para o mês é de 122,3 mm. Em 20 dias, o volume do Cantareira caiu de 30,1% para 28,2%. O Cemaden monitora bacias do sistema Centro-Oeste e Sudeste. No Cantareira, a situação já começou a se agravar em maio deste ano, primeiro mês da estação seca, que durou até setembro. “Para normalizar a situação nos reservatórios, teríamos que ter uma estação chuvosa de verão em 2021 muito, mas muito abundante. Mais rios voadores, mais frentes frias. Mas a chance de que isso aconteça não é muito grande, com a alta probabilidade do fenômeno La Niña”, observa José Marengo.
“Se o compromisso do Brasil para a COP-26 é aumentar nossa ambição e reduzir o desmatamento na Amazônia, na Mata Atlântica é restaurar”, avalia Ribeiro. “A Mata Atlântica é um bioma que cobre 17 estados do Brasil, onde estão as principais capitais do país, abriga 70% da nossa população e quase chegou ao ponto de não retorno – a menos de 8% da cobertura florestal. Hoje temos 12,8%.”
Por outro lado, Malu Ribeiro ressalta que ações de governança aliviaram os efeitos sentidos pela sociedade desta grave crise hídrica. O desmatamento quase chegou a zero no estado de São Paulo, a população adquiriu mais consciência no consumo d’água e o governo adotou medidas como o ICMS Ecológico, o pagamento por serviços ambientais (PSA) e o programa Município Verde Azul, pontua.
Enquanto dados do MapBiomas apontam que dois terços da Mata Atlântica são ocupados pela agropecuária, as áreas de manancial enfrentam outra ameaça: a especulação imobiliária. “A APA do Sistema Cantareira tem proteção, um plano de manejo que mantém a característica de zoneamento rural. E os prefeitos se revoltaram, foram atrás do governador de São Paulo para mudar essa regulamentação, justamente porque o mercado imobiliário está fazendo essa pressão”, alerta Ribeiro. Os políticos queriam que a APP se transformasse em zona de expansão urbana, na qual a zona de APP passaria de 100 para 15 metros.
“A gente fez essa restauração. Agora, o proprietário pode ser um produtor de água, porque conserva a floresta, e pleitear o PSA”, continua Ribeiro. “Esse valor, quando você vai competir com as outras atividades agrícolas, até pode ser razoável. Dá para fazer uma cesta de serviços ambientais, como por sequestro de carbono. Mas com o mercado imobiliário não tem como competir. É muita grana.”
Inflação e fome
No outro lado da Serra da Cantareira, Mônica Damasceno, 29, ajuda a organizar as caixas de cestas básicas que serão distribuídas a moradores da comunidade que ela carrega no sobrenome. Entre risos, garante que é apenas mais uma moradora do Jardim Damasceno, bairro que integra a Brasilândia, um distrito da capital paulista onde vivem quase 300 mil pessoas. O trabalho voluntário na ONG João Victor garante as cestas que alimentam não só os vizinhos, mas a própria família da auxiliar de enfermagem, que perdeu o emprego na pandemia de covid-19. “Antes a gente conseguia comprar ovo e salsicha, agora nem isso. Com a diminuição do auxílio emergencial, a coisa ficou muito mais complicada.”
A população da periferia foi a que mais sofreu durante a pandemia de covid-19 e agora é a primeira a sentir os impactos econômicos causados pela escassez de chuvas e a má gestão dos recursos hídricos, que afetam principalmente o preço dos alimentos. Nos últimos 12 meses, a inflação aumentou em 10,25% e a cesta básica, 22,23%. O preço do botijão de gás subiu 30%, enquanto a energia elétrica passou para a nova Bandeira Escassez Hídrica, com R$ 14,20 a cada 100 kWh, aumento médio de 6,78% na conta de luz.
“É a pior fase da minha vida”, diz Cristiano Victor, de 35 anos. Demitido da padaria em que trabalhava como chapeiro, o pernambucano não tinha mais renda para pagar o aluguel e construiu um barraco com tábuas ao lado de um córrego no Jardim Selma, na zona sul de São Paulo. “Estou aqui há três meses. Fui montando com material que encontrei na rua. Esse sofá fui pegar hoje, a cama já peguei. Fiz um trabalho para uma menina e ela me deu essa galinha, trouxe lá de Embu-Guaçu. Foram sete horas de viagem dentro da caixa. Aí o pessoal queria matar ela. Falei: ‘Não, melhor esperar e comer ovo todo dia’”, ele conta, enquanto alimenta a ave com restos de alface que conseguiu no final de uma feira livre. “O nome dela é Chiquinha.”