O novo Marco Regulatório do Saneamento (Lei 14026/2020 de 16/07/2020) que substituiu o até então vigente é na realidade uma alteração da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007 que aprimorava as condições estruturais do saneamento básico no Brasil, embora seis outros documentos legais tenham sido também alterados na montagem do PL 4162/2019, como a Lei que instituiu a ANA – Agência Nacional de Águas (Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000), a Lei que dispõe sobre as normas gerais de contratação de consórcios públicos (Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005), a Lei que trata de prazos para a disposição final de rejeitos e o Estatuto da Metrópole (Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015).
O novo Marco Regulatório que tem como objetivo atingir a universalização dos serviços de saneamento em 2033. Trata-se, na realidade, de uma espécie de carta de boas intenções, mas que também apresenta um caráter polêmico, demasiadamente ousado (ou corajoso) ao estabelecer algumas metas impraticáveis, que abrangem o país inteiro relativizando aspectos e diferenças regionais e culturais que ocorrem mesmo entre municípios pertencentes a mesma região geográfica ou entre cidades limítrofes ou regiões metropolitanas.
Por outro lado, encaro com otimismo o surgimento deste novo Marco dado que o mesmo representa um avanço, mercê às inovações que agrega, como fixar metas de universalização até 2033 (podendo ser estendido até 2040), elevar o status da ANA como agência reguladora de referência também do saneamento, promover o cancelamento do modelo atual de contrato de programa entre municípios e empresas estaduais de água e esgotos de forma a obrigar a concorrência entre empresas públicas e privadas, bem como apelar para a regionalização, isto é, a possibilidade de contratação coletiva de grupo de municípios como uma forma de contrabalançar a extinção do subsídio cruzado.
Muitas críticas têm sido dirigidas contra a promulgação desta Lei, sancionada com vetos, os quais ainda poderão ser derrubados pelo Congresso, sendo o principal deles aquele que autorizava os municípios sem contrato ou com contratos de concessão vencidos a celebrar, por 30 anos, novos contratos de programa com as companhias de saneamento sem concorrência pública. Embora correto, sob o ponto de vista do mercado, o veto descumpriu acordo político gestado no Senado e deverá ser derrubado.
Houve também outras críticas advindas desde a época da Medidas Provisórias de 2018 e 2019 emanadas das entidades do setor como (I) o fim dos subsídios cruzados, (II) o objetivo expresso de forçar a privatização das empresas estaduais de saneamento, (III) fragilização destas empresas públicas devido a falta de capacidade de se endividar e , por conseguinte, de atuar por falta de recursos e (IV) criação de um ambiente de insegurança jurídica.
Além destas, houve também questionamentos de cunho institucional, a ponto de ter sido ajuizado um pedido de medida cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) formulada junto ao STF pelo Partido Democrático Trabalhista por alegadas ofensas a diversos artigos da nova Lei o que já foi indeferido liminarmente por decisão monocrática do Ministro Luiz Fux.
Dentre os artigos da nova Lei questionados por aquele Partido Político que feririam a Constituição, destaca-se um suposto conflito federativo quando se trata da titularidade municipal. Tem sido entendimento do STF quanto à instituição de região Metropolitana ou microrregiões para saneamento básico a repartição constitucional de competências através de gestão compartilhada, prevalecendo o interesse comum sobre o local.
Mas, um dos aspectos de grande importância neste novo Marco Regulatório é incentivar o crescimento dos investimentos no saneamento com a maior participação da iniciativa privada de forma a aportar mais investimentos, imprimindo ao mesmo tempo um choque de gestão. Atualmente, as operadoras privadas respondem por apenas 6% dos contratos de concessão. Esta alavancagem poderá significar um aumento das PPPs que hoje se resumem a menos de 30 casos dentre concessões comuns e administrativas.
Entretanto, há dúvidas também por parte das entidades do setor quanto à atratividade que municípios menores possam exercer com relação às empresas privadas que naturalmente preferirão atuar em municípios que proporcionem maior retorno financeiro, ficando as empresas estatais de saneamento com o ônus de arcar com os serviços de água e esgotos dos municípios deficitários agravado pelo fato de não mais poderem contar com a política do subsídio cruzado. Foi, aliás, o que aconteceu no Estado do Tocantins onde a concessionária privada atende atualmente somente 47 municípios dentre os mais populosos, ficando os demais a cargo do Estado, através da Agência Tocantinense de Saneamento.
Para contornar esta lacuna, e dar viabilidade técnica e econômica aos municípios menos favorecidos, o novo Marco traz um conceito novo traduzido pelo compartilhamento de ativos calcado na Lei 13.089 de 12 de janeiro de 2015, denominada Estatuto da Metrópole que estabelece diretrizes gerais para o planejamento, a gestão e a execução das funções públicas de interesse comum em regiões metropolitanas e em aglomerações urbanas, estendendo seu âmbito de aplicação pela novel Lei também às microrregiões.
Desta forma, cria-se uma estrutura da prestação regionalizada estruturada em região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião, bem como unidade regional de saneamento básico instituída pelos Estados e bloco de referência estabelecido pela União, ambas modalidades constituídas por agrupamento de municípios não necessariamente limítrofes.
Percebe-se que o desafio é enorme: para se atingir metas de universalização de 99% de cobertura para abastecimento de água e 90% de cobertura de tratamento de esgotos até 2033, estima-se ser necessárias mais 17 milhões de ligações de água e mais 33 milhões de ligações de esgotos. Os valores dos investimentos estimados para que isso aconteça tem variado entre 400 e 700 bilhões até 2033.
O novo Marco Regulatório naturalmente carece ainda de regulamentações complementares que permitam sua aplicação, mas de se reveste de muitos desafios que terão de ser enfrentados na busca da universalização dos serviços de saneamento básico, representados pelo abastecimento de água, esgotamento sanitário, disposição ambientalmente adequada de rejeitos, drenagem e manejo das águas pluviais urbanas.
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*José Eduardo W. de A. Cavalcanti
É engenheiro consultor, diretor do Departamento de Engenharia da Ambiental do Brasil, diretor da Divisão de Saneamento do Deinfra – Departamento de Infraestrutura da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), conselheiro do Instituto de Engenharia, e membro da Comissão Editorial da Revista Engenharia
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