O ano era 1933 e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas ainda não era o IPT – o então Laboratório de Ensaios de Materiais, ou LEM, só receberia essa alcunha um ano depois, sob a liderança do engenheiro civil, pesquisador, educador e empreendedor Ary Torres. Nessa época, Torres já tinha em seu currículo trabalhos como especialista em materiais de construção, sobretudo ligados ao concreto. E foi com o objetivo de estudar a durabilidade e o desempenho desse material que foi lançado um projeto visionário e pioneiro até os dias de hoje: por que não estudar a resistência do concreto ao longo de 50 anos após sua produção?
Até então, havia apenas uma cimenteira nacional – a Cimento Perus, que concordou em participar do projeto proposto por Torres. Foram produzidos 240 corpos de prova com seis tipos diferentes de traço – ou seja, seis diferentes proporções de mistura dos ingredientes principais do concreto (cimento, areia, brita e água). Os corpos de prova, submetidos a condições controladas de armazenamento, deveriam passar por testes de ruptura com várias idades no período de 50 anos, para verificar a sua resistência à compressão.
O mercado da construção civil, o número de fábricas e os tipos de cimento cresceram no Brasil ao longo das décadas, assim como o projeto: até 1965, mais quatro cimenteiras aderiram ao projeto e cerca de 15 mil corpos de prova foram produzidos por diferentes gerações de pesquisadores e técnicos do Instituto. Ao longo dos anos e até hoje, os rompimentos foram realizados periodicamente, conforme as orientações iniciais de Torres – alguns exatamente nas datas especificadas, outros um pouco fora do cronograma.
Das 15 mil amostras, 422 ainda estavam armazenadas no IPT em 2019 – a ‘sobra’ se deu devido à produção em excesso, mudança de escopo do projeto e à conservação de alguns corpos de prova para estudos posteriores. Por exemplo, parte dos corpos de prova confeccionados em 1933 deveria ser submetida à exposição em água doce e salgada – o que nunca aconteceu. Foi a coleção desses 12 corpos restantes, não rompidos e armazenados no IPT, que permitiu um momento histórico: a análise da resistência do concreto após 86 anos da sua confecção.
“Não há projetos semelhantes a esse no Brasil. Mesmo no mundo, o único de que temos conhecimento é um projeto que analisou a durabilidade de 100 anos de concreto, na Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos”, aponta Karoline Mariana Gonçalves, pesquisadora do Laboratório de Materiais de Construção Civil do IPT. “As normas têm como padrão a análise do concreto após 28 dias da confecção. Para o concreto de 86 anos que rompemos, por exemplo, verificamos que a resistência continuou a crescer após esse período. Isso permite criar parâmetros para o comportamento do concreto em obras de construção civil, muitas datadas da mesma época de confecção dos corpos de prova”, analisou.
Além de dois corpos de 1933, mais 10 datados de 1942, 1954, 1963 e 1964 foram rompidos em novembro de 2019. Ex-pesquisadores do IPT que trabalharam no projeto, muitos deles referência no cenário do cimento e do concreto no Brasil atualmente, estiveram presentes. Os resultados dos ensaios de compressão mostraram que a resistência do concreto aumentou consideravelmente com a passagem dos anos (veja tabela com os dados).
“Esses resultados são importantes não apenas para a tecnologia do concreto, mas para a evolução da indústria brasileira. Embora o concreto seja um material antigo, a fabricação dentro de um protocolo, com composição química definida, é recente, tem cerca de 100 anos. É um material muito jovem”, explica Paulo Roberto do Lago Helene, ex-presidente e atual diretor do Instituto Brasileiro do Concreto (Ibracon). “Agora, temos informações fidedignas do comportamento do material ao longo do tempo – é um material de referência, importante para o crescimento do setor e da consolidação da nossa forma de construir”.
Os resultados completos dos rompimentos realizados no evento de novembro, junto às análises dos corpos de prova, devem ser disponibilizados em artigos científicos nos próximos meses.
UM NOVO PROJETO – Organizar um banco de dados capaz de fornecer informações de valor para o meio acadêmico e industrial da construção civil, bem como para a sociedade, é uma das prioridades da equipe atual do Laboratório de Materiais de Construção Civil do IPT. Em 2017, o laboratório iniciou um projeto de capacitação para recuperar, organizar e sistematizar todos os documentos, relatórios, certificados, dissertações, teses e trabalhos acadêmicos relacionados ao projeto.
“Os últimos rompimentos, que deveriam ter ocorrido em 2015 – totalizando 50 anos dos últimos corpos de prova moldados – foram postergados, a fim de que pudéssemos organizar o grande volume de material”, conta Priscila Rodrigues Melo Leal, coordenadora do trabalho. “Digitalizamos os documentos e tabulamos os resultados de todos os ensaios realizados nos últimos 86 anos. Entendemos que isso era fundamental para dar continuidade e conclusão a esse projeto”.
O próximo passo, segundo a pesquisadora, é prosseguir com os rompimentos e a análise das propriedades físico-mecânicas dos materiais, tal como idealizado em 1933. Mas não só – a evolução da tecnologia, aliada ao excedente de corpos de prova armazenados no Instituto, deve abrir um leque de novas oportunidades de análise e compreensão do material.
“Dispomos hoje de novas tecnologias que permitem uma análise mais apurada do concreto. Pretendemos fazer uma análise microestrutural das amostras, com a qual poderemos avaliar a evolução do material cimentício em termos de distribuição e composição. Também serão feitas análises mineralógicas e químicas, além de outras mais refinadas, como tomografia computadorizada, por exemplo”, enumera Leal. “Guardar algumas amostras para garantir novas informações conforme a tecnologia e ciência avançam também é um objetivo”, finaliza.
Nas palavras de Maria Alba Cincotto, ex-pesquisadora do Laboratório de Químicas de Materiais do IPT (precursor do atual Laboratório de Materiais de Construção Civil do Instituto) e atual professora da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), o estudo pode ser considerado um tesouro, e vem em momento ‘feliz’ da ciência do cimento e do concreto. “Se esses ensaios tivessem sido feitas há dez anos atrás, não teríamos as respostas que poderemos ter hoje, porque as técnicas de análise da microestrutura e tudo o que envolve materiais cimentícios estão mais desenvolvidos atualmente”, aponta ela, que fez o rompimento de um corpo de prova cinquentenário do projeto durante seus anos de trabalho no IPT.
PASSADO, PRESENTE E FUTURO – Para Fabiano Ferreira Chotoli, pesquisador atualmente à frente do laboratório do IPT, entender o comportamento do concreto é de fundamental importância para a sua preservação. “Muitas obras de arte, como pontes e viadutos, e mesmo edifícios foram construídos utilizando concreto na cidade de São Paulo no início do século passado”, conta.
Na opinião do pesquisador, o projeto realizado pelo IPT tem como contribuição um maior conhecimento do material. “Parece simples analisar a resistência do concreto; por trás disso, existem outros conhecimentos. Entender a capacidade que o concreto tem de suportar algumas condições é fundamental para buscar alternativas para sua recuperação e para a escolha de materiais compatíveis a serem adotados”, aponta.
Francisco de Assis Souza Dantas coloca sua opinião na mesma linha. Dantas trabalhou no IPT por mais de 20 anos – alguns deles no então Laboratório de Concreto, participando ativamente do projeto junto ao colega Carlos Eduardo de Siqueira Tango (cujo doutorado envolveu a análise da influência da temperatura do local onde foram armazenados os corpos de prova).
“Além do aspecto da estabilidade e da segurança do concreto, esse projeto traz à luz a questão da durabilidade. Pretende-se com uma construção de concreto armado que ela dure anos e anos. Temos toda uma infraestrutura de saneamento básico, com estações de tratamento de água e esgoto, para as quais o material mais apropriado para a construção ainda é o concreto. O trabalho do IPT auxilia a dimensionar o concreto para suportar a agressividade do meio ambiente”, avalia Dantas.
“O cimento do início do século era um cimento Portland comum, de clínquer e gipsita. Hoje, temos a inserção de materiais suplementares cimentícios, adições minerais e outros aditivos, tanto no cimento quanto no concreto, que procura elevá-los a patamares mais avançados de durabilidade e desempenho. Entender como esse cimento era na época e como está se comportando hoje é fundamental – trata-se de um material de referência que também fornecerá informações relevantes para os tecnologistas projetarem concretos cada vez mais duráveis”.