É cada vez maior no mundo a preocupação com o desenvolvimento sustentável que envolve inclusive o reaproveitamento de materiais e recursos. Esse é o escopo de pesquisas desenvolvidas por docentes da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp, preocupados inclusive em desenvolver nos futuros engenheiros a consciência da necessidade da busca de alternativas de sustentabilidade, principalmente quando se sabe que a construção civil é uma das atividades que mais utilizam recursos naturais. É dentro dessa perspectiva que se desenvolve a pesquisa interdisciplinar em que estão envolvidos três professores da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp: a arquiteta e urbanista Mariana Rodrigues Ribeiro dos Santos, o engenheiro químico Adriano Luiz Tonetti, ambos hoje pertencentes ao recém-criado Departamento de Infraestrutura e Ambiente, e o engenheiro civil Gustavo Henrique Siqueira, do Departamento de Estruturas. Nos estudos por eles desenvolvidos a água potável foi 100% substituída pelo esgoto tratado na produção de pisos intertravados de concreto destinados à pavimentação. O trabalho tem o objetivo de fornecer suporte a técnicas e processos que permitam minimizar o consumo da água tratada na produção de concreto.
A importância do estudo ressalta quando se sabe que nos centros mais adensados do país, e que por isso consomem maiores volumes de concreto, cerca de 9% do total de água utilizado na atividade industrial é empregada na produção desse material. Com a agravante de que, embora o Brasil possua a maior reserva de água doce do planeta, sua distribuição é desigual, o que leva grandes centros do sudeste ao estresse hídrico em determinadas épocas do ano, caso de São Paulo, seu estado mais industrializado e populoso.
Trabalho e publicações
O estudo teve três vertentes. Inicialmente, coube a Adriano, como engenheiro químico, avaliar a viabilidade da utilização do esgoto tratado, proveniente da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), operada pela Sanasa, em Barão Geraldo, distrito do município de Campinas, SP, para a fabricação de blocos de concreto.
Na sequência, Gustavo, engenheiro civil, acompanhou a produção dos corpos de provas, constituídos por amostras cilíndricas de 0,10 m de diâmetro e 0,20 m de altura que seriam avaliadas em relação à resistência à compressão e à capacidade de absorção de água. Os resultados obtidos nos ensaios desenvolvidos no Laboratório de Estruturas a partir desses corpos de provas, em que a água portável foi substituída pela água do esgoto tratado em 25, 50, 75 e finalmente 100%, foram comparados entre si e com os resultados provenientes de amostras produzidas apenas com o emprego de água tratada. Os parâmetros utilizados nas comparações mostraram-se praticamente semelhantes em todos os corpos de provas e nos blocos produzidos tanto com esgoto tratado como com água potável. As indicações iniciais sugerem que a água de reuso poderá vir a ser uma boa alternativa para reduzir o consumo de água potável na produção de concreto.
Finalmente, Mariana, com formação em arquitetura e urbanismo e atuação mais ligada à área de planejamento ambiental, avaliação de impactos e atividades correlatas, deteve-se em verificar como as pessoas avaliam os blocos de concreto intertravados produzidos a partir de 100% de esgoto tratado e aplicados, em caráter experimental, em uma faixa no piso do estacionamento da FEC, paralela a outra constituída por blocos convencionais, em trecho em que circulam os veículos que o utilizam.
Um questionário aplicado na FEC entre professores, alunos e funcionários, que teve cerca de 240 participantes, procurou verificar a aceitação do produto elaborado a partir de esgoto tratado na utilização em residências. Ela considera a aceitação boa, pois cerca de 85% dos pesquisados utilizaria o material na área externa, índice que caiu para 55% quando se considerou seu uso nas dependências internas. As ressalvas decorreram principalmente de duas indagações: o material não seria nocivo à saúde? e qual sua durabilidade? Entretanto, os pesquisadores deixam claro que esses receios não se justificam, pois os pisos não acarretam quaisquer problemas relacionados à saúde ou à resistência.
A maioria dos usuários do estacionamento da FEC não percebeu diferença entre as duas faixas de blocos lá implantadas, fabricados a partir de 100% da água de reuso e da água potável, mesmo porque as duas séries de blocos mantém a mesma aparência e a pequena diferença de cor é inerente ao próprio processo de produção. A maioria declarou-se favorável ao emprego desse novo produto face à redução de custos e recursos utilizados, além dos benefícios para o meio ambiente. Frise-se que, no caso, a água de reuso tem custo muito inferior ao da água potável, o que para usinas de concreto certamente é interessante, mas resta verificar como elas receberiam a inovação.
Os estudos renderam, até o momento, dois artigos nos periódicos mantidos pela Associação Internacional de Águas, IWA Publishing, o que denota o interesse da sociedade e da comunidade cientifica por um tema que está em pauta. No Water Supply os pesquisadores abordam o “Environmentally friendly interlocking concrete paver blocks produced with treated wastewater”. NoJournal of Water, Sanitation &Hygiene for Development o tema foi “Water reuse in the production of non-reinforced concrete elements: An alternative for decentralized wastewater management”.
Impactos no meio ambiente
O professor Adriano lembra que as normas atuais ainda não permitem a utilização de água de esgoto tratado para produção de concreto. Entretanto, o estudo dessa viabilidade se justifica pelo fato de a indústria de concreto estar entre as que mais demandam água o que pode comprometer o abastecimento em regiões como a Sudeste em que há escassez hídrica. Na região de Campinas a disponibilidade hídrica é menor que a do Nordeste. Então ele se pergunta: não existiria possibilidade de destinar as águas menos nobres para a produção de concreto? E enfatiza: “No futuro, caso não utilizemos a água de forma inovadora e consciente, ela não estará suficientemente disponível para atender populações e empresas, o que poderá vir a comprometer empregos e gerar problemas sociais. Cada vez mais urge buscar alternativas sustentáveis que venham a garantir água para todos”.
Embora os ensaios realizados no Laboratório de Estruturas tenham revelado, em um primeiro momento, a manutenção das propriedades mecânicas em todos os blocos produzidos com esgoto tratado, e aqueles instalados no estacionamento da FEC tenham sido aplicados já há dezoito meses, há ainda necessidade do acompanhamento do comportamento do material ao longo do tempo e também avaliações de suas propriedades microscópicas. O professor Gustavo ainda deixa claro que os testes foram feitos em elementos não estruturais e, portanto, sem a presença de barras de aço: “O estudo tem que avançar para que se constate a ausência de reações em peças de concreto armado ou mesmo alterações de longo prazo no concreto simples porque se sabe que o esgoto tratado tem componentes orgânicos, embora o concreto não favoreça a proliferação de microrganismos”.
Como a construção civil constitui uma das atividades que mais consome recursos naturais e causa impactos ambientais negativos ao meio, e diante da necessidade cada vez maior de fazer uso de processos sustentáveis, a professora Mariana considera muito importante desenvolver nos alunos de engenharia civil a consciência de preservação ambiental, mesmo porque, “acho que grande parte dos cursos de engenharia não incorpora essa necessidade e neles prevalece ainda a ênfase na produção tradicional. Nosso estudo ajuda os profissionais de engenharia a pensar em alternativas”, diz ela. O professor Adriano considera que isso é facilitado por uma pesquisa que tem caráter interdisciplinar, envolvendo várias áreas de engenharia da Unidade. A propósito ele acrescenta: “A questão ambiental deve permear a formação do engenheiro do futuro que precisa estar preocupado com os materiais que vai usar, de onde eles vêm, como são obtidos, quais suas características e que impactos ambientais provocam tanto em decorrência das origens, dos processos de produção como dos usos”.
Em relação à preocupação com à saúde, o grupo de pesquisadores deixa claro que não pretende que essa água de reuso seja utilizada nas reformas ou construções residenciais em que haveria contato direto com ela. O objetivo do estudo é o seu emprego em usinas de concreto e nas empresas que produzem peças de concreto, nas quais não há contato direto dos trabalhadores com a água. A preocupação é a de que ela tenha características adequadas para a produção de um concreto amigo da natureza. Confirmada essa possibilidade, a empresa Villa Stone – Artefatos de cimento e concreto, que produziu os blocos e tem colaborado com os pesquisadores, tem interesse nessa água de reuso para produção de pisos intertravados desde que as normas permitam.