CAPÍTULO 3
Tôco dá o ar da graça.
Entre a chegada de Nê e janeiro de 1946 passaram apenas seis meses. A Anja Francisquinha, não saiu um segundo sequer do lado do protegido. Prestava atenção em tudo e cutucava a mãe dele, sem que ela percebesse, a cada dorzinha de barriga, a cada fralda suja ou molhada, a cada resmungozinho de fome ou sede, para serem dispensados cuidados imediatos à criaturinha. Era um exagero! Até preparou as previsões zodiacais. Anteviu algo perturbador, mas achou graça e boniteza nas possíveis dificuldades.
Viu que Nê tinha alma de guerreiro, mais interessado em lutar por uma causa ou crença do que apenas observar o que acontecesse. Nê haveria de querer educar os outros, persistir em caminhos escolhidos, seguir uma inspiração vital. Sua relação gregária basear-se-ia na centralização, no magnetismo, na sedução. Afinal não foi esta a pedra de toque que a cativou? Francisquinha, entretanto, estremeceu ao enxergar que Nê poderia vir a desenvolver múltiplas paixões ardentes, porém todas estáveis e duradouras, em face do romantismo povoador de seu coração. Sem nada ainda ter acontecido, Francisquinha começou a ter ciúmes.
Foi neste clima que, após várias chamadas, o Arcanjo Manuel conseguiu que Francisquinha fosse às pressas para uma certa maternidade no mesmo bairro do Cinamomo. Lá já estava outra mãe, portadora da segunda incumbência da anjinha. Que diferença em relação a Nê! Tôco, este é o pseudônimo que usarei para a garotinha em prol de seu anonimato, nasceu sem nenhum problema ou intercorrência. Foi uma expulsão fácil, rápida e praticamente indolor. Que alegria ver a nova pessoinha, cabeludinha, muito linda e feminina. E veio então a idéia a Francisquinha. “Vou fazer de tudo para que um dia o Nê venha a querê-la e abandone as atribulações que os astros lhe reservaram”. Afinal, o mapa astral da Tôco também dizia muitas coisas.
Neste passo, no destino de Tôco previam-se grandes projetos, certamente alcançáveis pela disciplina férrea de seu caráter, essencialmente altruista. A tenacidade esperada era tão aguda que beirava a teimosia, sempre em busca de melhorar as coisas existentes. Frustração não faria parte de seu modo de ser. Tôco estabeleceria suas metas e jeitosamente iria ao seu encontro. Ninguém desprezaria sua lealdade, determinação, confiabilidade e temperamento sério e responsável. Embora cautelosa, Tôco haveria de, um dia, vir a encontrar o amor e cuidar de manter a todo custo quem viesse a escolher para si.
Francisquinha adorou a nova protegida e muito se identificou com a meiguice dela esperada. Se a anjinha fosse humana quereria ser Tôco. E assim, ficou bem dividida entre uma criança e outra. Felizmente voava e podia atender às suas obrigações de guarda. Foram uns doze anos de muita comunicação e cuidados, para lá e para cá.
Mas Nê e Tôco foram crescendo e a paz de Francisquinha começou a balançar.
CAPÍTULO 4
A infância de Nê.
Em sua infância Nê fazia tudo o que um menino de bairro dessa época fazia, exceto duas atividades corriqueiras. Nunca se interessou por rodar piões. Gostou, durante um tempinho, de jogar futebol em arremedos de pequenas equipes, mas, por ser pouco habilidoso, logo abandonou tal tipo de brincadeira. Quando, em uma grande loja magazine, foi apresentado ao Papai Noel, puxou-lhe a barba que, postiça, revelou uma pessoa comum. Soube, então, que presentes vinham de pessoas reais e gostou disso.
Vestiu sua primeira cueca aos seis anos, no primeiro dia do curso primário. Nesse tempo não era usual o Jardim de Infância e os meninos iam diretamente para a primeira série do primeiro ciclo.
A mais antiga lembrança que Nê gravou foi a morte da avó paterna. Deve ter sido muito chocante para ficar em sua memória, pois Nê tinha só dois anos quando tal aconteceu.
Lia, e muito. Aos três anos de idade ganhou uma cartilha, a Sodré, a d’A Pata Nada. Devorou-a.
Quando foi ao primeiro ano do Grupo Escolar já sabia ler e escrever, tudo aprendido sozinho, com uma ou outra pergunta feita aos mais velhos sobre o conteúdo da cartilha e também sobre letras e palavras em leituras de jornal.
Colecionou gibis, como eram chamadas as revistas em quadrinhos. Formou pilhas e pilhas de Patos Donalds, Tios Patinhas, Mickeys, Capitães Marvels, Fantasmas e Mandrakes. A partir do primeiro ano do primário, conheceu a Coleção Terramarear, em cujas maravilhosas aventuras mergulhou e, junto com os personagens, combateu malfeitores, desbravou terras inóspitas e navegou por mares bravios.
Depois leu praticamente todos os clássicos brasileiros. Esse interesse exacerbado pela leitura apagou quase todo o seu ímpeto pelas atividades físicas.
Foi um menino arteiro e um tanto malvado. Certa vez, estava judiando de um primo de mesma idade, quando o avô o repreendeu dizendo que ele era um menino muito ruim, como um diabinho, e que até estava vendo nascer o rabinho. Nê tirou o pintinho para fora do calção e respondeu que rabinho nascendo só podia ser aquilo. Gostava de assustar as irmãs mais novas, cobrindo-se com um lençol e fazendo as vezes de fantasma. Fazia pacotinhos bem feitos, com papel metálico e fitas coloridas, cheios de fezes, e deixava na calçada. Ficava espreitando até alguém apanhar o pacotinho, quase sempre sorrateiramente, e enfiá-lo no bolso. Daí em diante ria por muitas horas, só imaginando a expressão facial do incauto apropriador do pacotinho, ao abri-lo.
Desse modo, Francisquinha tinha mais eram cuidados de babá, exceto quanto a uma peculiar característica, de dificílima reformulação. Desde muito cedo, Nê se interessou vivamente pelo sexo oposto. Era apenas um garotinho e já adorava quando uma prima moça ia experimentar vestidos que sua mãe costurava. Era-lhe irresistível só olhá-la em calcinha e sutiã. Incontinente, ia apalpá-la e ouvia protestos afetuosos, porém enérgicos. Foi então que começou a aprender era feio mexer em mulher.
De pouco em pouco, foi se limitando a espiar pelos buracos das fechaduras dos banheiros as empregadas de casa. Com menos de seis anos, exigiu do pai a explicação sobre o nascimento de filhos, desconfiado agudamente que isso nada tinha a ver com a tal da cegonha, mas tinha tudo a ver com aquele comichão que lhe assaltava ao ver mulher pelada. Viveu grandes turbulências por conhecer a gramática sem ter condições para a prática. Mas era lindo procurar na revista O Cruzeiro, o principal veículo de variedades da época, as fotos das misses de concursos de beleza, em seus maiôs modelo Catalina, hoje só usados em colégios de freiras ortodoxas.
Foi assim que, com grande tristeza, Nê descobriu que Papai Noel não existia. Mas, um pouco mais tarde, com grande alegria confirmou as delícias da inexistência da Cegonha.
De fato, num repente da adolescência, o mundo se revelou a Nê. Pois foi daí que as peripécias começaram e Francisquinha passou a ter muito trabalho. Evidentemente, não será possível relatar todas as aventuras, por numerosas que foram, e, muito menos, os detalhes, proibidos no padrão desta narrativa.
(Continua)
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