Grande parte dos projetos brasileiros segue a cultura técnica da área plana, mesmo em locais com relevos acidentados. A crítica é do geólogo Álvaro Rodrigues dos Santos e tem como alvo arquitetos, engenheiros responsáveis por implantações imobiliárias, urbanistas e empresas municipais e estaduais de habitação. “Não possuímos no país uma cultura técnica arquitetônica e urbanística especialmente adequada à ocupação de terrenos com acentuada declividade”, afirma.
Segundo Rodrigues, os projetistas deveriam adequar os projetos à natureza, e não modificá-la de acordo com o projeto. O geólogo garante que, se utilizados métodos científicos e técnicas construtivas adequadas, locais com declividade de até 35% de declividade podem receber construções de forma segura. Confira, a seguir, artigo assinado pelo engenheiro geotécnico sobre o tema:
Áreas de risco, geologia e urbanismo
Os graves e recorrentes problemas de ordem geológico-geotécnica que têm vitimado milhares de brasileiros, como erosão, assoreamento, enchentes, acidentes associados a deslizamentos de taludes e encostas, produção de áreas de risco, têm sua origem, quase sempre, na incompatibilidade entre a ocupação urbana e as características geológicas e geotécnicas dos terrenos.
Ou são ocupados terrenos que por sua alta instabilidade geológica natural não deveriam nunca ser ocupados, ou são inadequadamente ocupadas áreas de até baixo risco natural, perfeitamente passíveis de receber a ocupação urbana, com o que, mesmo nessas condições naturais mais favoráveis, são geradas situações de alto risco geotécnico.
O fato é que não possuímos no país uma cultura técnica arquitetônica e urbanística especialmente adequada à ocupação de terrenos com acentuada declividade. Isso se verifica tanto nas formas espontâneas utilizadas pela própria população de baixa renda na autoconstrução de suas moradias, como também em projetos privados ou públicos de maior porte que contam com o suporte técnico de arquitetos e urbanistas e têm, apesar do erro básico e grave de concepção, sua implantação autorizada pelos órgãos municipais responsáveis.
Em ambos os casos, ou seja, no empirismo popular e nos projetos mais elaborados, prevalece infelizmente a cultura técnica da área plana. Isto é, por meio de cortes e aterros obtidos por operações de terraplenagem obsessivamente se produzem os platôs planos sobre os quais irá ser edificado o empreendimento. Esse tem sido o cacoete técnico que está invariavelmente presente na maciça produção de áreas de risco nas cidades brasileiras que, de alguma forma, crescem sobre relevos mais acidentados.
É imperiosa a necessidade do urbanismo brasileiro incorporar em sua teoria e sua prática os cuidados com as características geológicas dos terrenos afetados. Essa nova cultura automaticamente levaria a uma estreita colaboração entre Arquitetura, Geologia e Geotecnia. Como concisa diretriz, podemos entender que está colocado o seguinte desafio à arquitetura e ao urbanismo brasileiros: usar a ousadia e a criatividade para adequar seus projetos à natureza, em vez de, burocraticamente e comodamente, pretender adequar a natureza a seus projetos.
Sobre o limite máximo de declividade compatível com a ocupação urbana, podemos assumir uma extensão legal da Lei Lehmann. Essa lei, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano no território nacional, em seu Artigo 3o, item III, proíbe a ocupação urbana de encostas com declividade igual ou superior a 30% (~16,5º), abrindo exceção para situações onde são atendidas exigências específicas das autoridades competentes. Poderíamos imaginar um aperfeiçoamento dessa legislação, retirando a estranha exceção e estendendo o limite superior da declividade permitida para 35% (~20º), uma vez atendidos obrigatoriamente certos conceitos básicos de arranjo urbanístico e técnicas construtivas.
Podemos assim entender os conceitos básicos que devem reger a ocupação urbana de encostas com declividade até 35%:
– prescindir de cortes e aterros superiores a 1 (um) m de altura;
– lotes com a maior extensão paralela às curvas de nível;
– evitar ruas a nível e privilegiar ruas em ladeira;
– proibição de fossas de infiltração;
– execução do sistema de drenagem superficial, da pavimentação urbana e das proteções contra a erosão concomitantemente à implantação do loteamento.
As propostas estão reproduzidas nos modelos apresentados de concepções urbanísticas e técnicas construtivas aderentes a esses conceitos básicos, os quais deveriam ser adotados pelos municípios como referências para a aprovação da ocupação urbana de suas áreas com declividade até 35%.
Álvaro Rodrigues dos Santos é consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente; ex-diretor de Planejamento e Gestão do IPT e ex-diretor da Divisão de Geologia; autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Cubatão” e “Diálogos Geológicos”
Autor: PiniWeb