O café com leite foi o alicerce de uma política que representou o atraso do Brasil em boa parte do século XX. Não era diferente em Santa Rita do Sapucaí. Nos anos 50, no entanto, uma ilustre filha da aristocracia local levou para a pequena vila do sul de Minas Gerais uma novidade trazida do Japão: a eletrônica.
Casada com um diplomata, Luzia Rennó Moreira, conhecida como Sinhá Moreira, viajou o mundo todo e encantou-se com a tecnologia quando esteve no Extremo Oriente. Com uma visão de futuro incomum para a época, fundou em 1958 a primeira escola de eletrônica da América Latina.
A Escola Técnica de Eletrônica (ETE) foi a semente do Vale da Eletrônica, como é conhecido o polo de empresas de Santa Rita. Hoje a cidade abriga também o Instituto Nacional de Telecomunicações (Inatel), fundado em 1965, e a Faculdade de Administração e Informática, de 1971, ambos dedicados ao ensino superior.
O resultado desse investimento são 141 empresas que fabricam diversos produtos de base tecnológica e vêm se esforçando para substituir importações no Brasil e aumentar a relevância do país no setor. Para divulgar seus produtos, a cada dois anos a cidade organiza a Feira Industrial do Vale da Eletrônica (Fivel).
Empresas se dedicam a substituir importações, mas também exportam
O passado, no entanto, ainda não está totalmente afastado. A religião ocupa papel central, com uma estátua da padroeira Santa Rita logo à entrada da cidade. As empresas visitadas tinham imagens de santos e bíblias à mostra nas recepções. Essa religiosidade traz uma característica curiosa: quem quiser fazer uso dos serviços de um motel deve procurar cidades vizinhas. Em Santa Rita, nada feito.
Além disso, na área rural do município o café ainda é rei. Nos meses de colheita as empresas locais perdem alguns funcionários que vão trabalhar na lavoura… e depois voltam para seus empregos na indústria.
Em meio a esse ambiente pitoresco aconteceu recentemente a 11ª Fivel. Na cidade de 40 mil habitantes, 9,5 mil trabalham no Arranjo Produtivo Local, o conjunto de empresas que se aproveitam da proximidade e das condições oferecidas pelo município e pelo estado para produzir na cidade. É lá, por exemplo, que são fabricadas as urnas eletrônicas usadas na nossa festa da democracia.
Segundo Roberto Souza Pinto, presidente do Sindicato do Vale da Eletrônica (Sindvel), o investimento anual em inovação está em cerca de R$ 180 milhões, sendo 25% do governo. Roberto explica que a grande maioria das empresas locais são micro ou pequenas, montadas primeiro em incubadoras da cidade. O processo de incubação ajuda a evitar falências, oferecendo suporte técnico e jurídico.
Quando formadas, essas empresas produzem uma variada gama de produtos de eletrônica, cobrindo áreas como telecomunicações, radiodifusão, TV digital, segurança, sensores, etc.
Carga tributária, o inimigo comum
Roberto defende a estratégia de manter empresas pequenas em Santa Rita. Para ele, uma fábrica de cinco mil funcionários desestruturaria a cidade. Alguns empresários locais, no entanto, discordam e afirmam que é preciso haver mais ousadia, pois a competição no setor é ferrenha e os investimentos em inovação altos demais.
Em um ponto, todos concordam: os impostos precisam diminuir. Em Minas há um protocolo de intenções que garante descontos no ICMS, dependendo do projeto da empresa. Mas os empresários dizem que isso não é o bastante, e o presidente do Sindvel lembra que na Coreia do Sul fábrica que exporta tem imposto zero.
– Se é para processo produtivo, não pode ter imposto. Produção gera emprego, desenvolvimento, divisas para o país – defende.
De qualquer forma, a exportação ainda é uma fatia discreta dos negócios de Santa Rita. Ali, o mercado nacional é o principal alvo, já que ainda importamos muitos eletrônicos.
– Nosso grande mercado é a substituição de importação. Exportação ainda é um aprendizado. Hoje, 62 empresas do APL exportam, o que corresponde a cerca de 7% da produção local. São pequenas empresas que concorrem de igual para igual com toda a infraestrutura da Ásia – diz Roberto.
A Ásia, aliás, é onipresente nas conversas. Segundo os empresários, é impossível competir com o preço e escala que eles oferecem para matéria-prima. Cada placa de circuito integrado tem pelo menos 25 componentes. Na China compra-se uma caixa com mil componentes por US$ 0,08. A saída é fabricar produtos de maior valor agregado. Conheça alguns deles na próxima página.
Cabos, fontes, tomadas, urnas, controladores de roboôs e até leiteiras
Os moradores de Santa Rita podem dizer orgulhosos que no domingo quase todos os brasileiros utilizarão um produto da cidade. Desde 2008 é lá que são feitas as urnas usadas nas eleições. A MCM foi contratada pela Diebold (vencedora da licitação do TSE) para fabricá-las.
O modelo atual já tem leitura biométrica, um pequeno monitor na extensão do mesário que mostra a foto do eleitor e leitor de smart card. A leitura biométrica, no entanto, ainda está em teste e muitos modelos antigos seguem sendo usados em boa parte das cidades do país.
Apesar de serem o produto mais chamativo, as urnas não são o carro-chefe da empresa. A MCM fabrica fontes, baterias e no-breaks que alimentam o mercado nacional.
Outro bom exemplo de substituição de importação vem da Enterplak. A empresa fabrica desde fontes de energia a complexas placas controladoras de robôs. Um de seus principais produtos é o token de senhas do Bradesco. O aparelhinho gera uma senha de confirmação a cada transação bancária, impedindo a ação de hackers. Tudo com selo “Made in Brazil”.
Tomadas, lâmpadas e outros produtos para controlar gastos de energia foram uma sensação na feira. Um dos mais interessantes é o Eco Shower, que permite um controle mais fino da temperatura de chuveiros elétricos.
E, no fim, voltamos ao café com leite. O Fasttino deixou todos na Fivel com água na boca. Ele esquenta e processa o leite, transformando-o numa espécie de creme. A partir daí, pode-se fazer chocolate quente, capuccino, leite cremoso com mel, etc. O produto chegará ás principais lojas do Brasil no próximo mês e deverá custar entre R$ 150 e R$ 180.
Autor: O Globo