Dos processos erosivos que assolam o país em suas áreas rurais e urbanas, a boçoroca é sem dúvida o de maior energia destrutiva. Por essa característica atraiu a atenção de muitos pesquisadores e estudiosos dos campos da geologia, da geotecnia e da agronomia, pelo que o fenômeno foi, já há décadas, muito bem estudado, tanto em suas causas como nas medidas e serviços para sua prevenção e para sua estabilização. Infelizmente, como acontece com muitas outras situações, o desenvolvimento técnico verificado não foi suficiente para que medidas de gestão territorial e medidas localizadas de engenharia geotécnica fossem largamente adotadas, o que teria já aliviado o país de boa parte dos enormes prejuízos sociais e econômicos decorrentes desses processos erosivos.
Em termos gerais uma erosão se dá fundamentalmente pela combinação das ações de remoção e transporte de partículas de solo por agentes naturais como o vento e a água. Como uma de suas decorrências, há ao final também a ação de deposição (assoreamento de cursos d’água, baixadas, lagos) do material removido e transportado.
Ao longo da história geológica do planeta a erosão constituiu-se no principal processo de modelamento de sua superfície. As grandes bacias sedimentares, a forma das montanhas, dos planaltos e das planícies são todas situações associadas de alguma forma a processos erosivos. A imagem forte e conhecida do Grand Canyon expressa a dimensão e a dinâmica reais de um processo erosivo natural em plena atividade.
O ápice de ação dos processos erosivos naturais sempre esteve associado a fases geológicas em que os solos superficiais se apresentavam desprotegidos, normalmente como conseqüência de variações climáticas que implicavam na morte das coberturas vegetais.
Há dois fatores naturais que protegem os solos da erosão: a vegetação e a camada superficial dos solos (no meio tropical, algo em torno de 1 a 3 metros; o horizonte B agronômico) que, pela maior decomposição mineralógica (produção de minerais argilosos) e pelos fenômenos de laterização e pedogênese, são mais coesivas, menos susceptíveis aos agentes erosivos. Através da Agricultura e da Urbanização o Homem sistematicamente elimina esses dois agentes naturais protetores. Como desgraçadamente não adota, em contrapartida, técnicas de cultivo (técnicas conservacionistas) e de urbanização que evitem a ação direta dos agentes erosivos sobre os terrenos, o Homem tem se constituído no principal fator causal dos gigantescos e catastróficos processos erosivos que acontecem hoje em todo o mundo, especialmente incidentes nos países em desenvolvimento, onde se dá uma permanente expansão das fronteiras agrícolas e urbanas.
No Brasil, o principal agente erosivo é a água associada a chuvas torrenciais. A erosão pluvial pode ser laminar, quando não sulca os terrenos, ou linear, quando age concentradamente sobe o terreno, escavando-o em sulcos, ravinas (sulcos mais profundos) ou boçorocas.
As boçorocas são ravinas que se aprofundaram a tal ponto que atingiram o lençol freático. Quando o lençol freático é atingido há uma combinação potencializada entre erosão pluvial superficial e o solapamento dos taludes provocados pelo encharcamento da base e por fenômenos de “piping”, quando a saída da água subterrânea traz consigo grãos do próprio solo, processo que provoca o contínuo descalçamento dos horizontes superiores. As boçorocas evoluem remontantemente com energia e velocidade muito grandes, podendo alcançar profundidades de várias dezenas de metros e larguras de até centena de metros. Zonas rurais e cidades brasileiras que, adicionalmente, assentam-se sobre solos pouco argilosos, e por isso mais erodíveis, são testemunhas do enorme poder de destruição das boçorocas.
As boçorocas, por sua gênese, estão sempre associadas à retirada da vegetação protetora dos terrenos, à remoção (por terraplenagem) ou ao revolvimento e desagregação da camada de solo superficial mais argilosa e, isso é muito importante, a alguma intervenção humana que tenha propiciado um escoamento concentrado de águas superficiais.
Tanto as atividades agrícola e pecuária, como as expansões urbanas, como a implantação de obras de engenharia, caso não sejam tomados os devidos cuidados técnicos, são pródigas em propiciar escoamentos concentrados de água superficial. É essa concentração de água superficial de escoamento que vai abrir os primeiros sulcos e vai aprofundá-los até se transformarem em imensas boçorocas.
A partir do perfeito conhecimento de sua dinâmica de formação, as recomendações técnicas para que tanto no meio rural como no urbano as boçorocas sejam preventivamente evitadas e corretivamente estabilizadas surgiram com clareza e naturalidade no meio técnico. Diversas alternativas estão à disposição para que se alcancem esses objetivos; discuti-las não está nos objetivos desse artigo, mas pode-se aqui apontar uma orientação conceitual de primeira ordem: os escoamentos concentrados de água produzidos por algum tipo de ação humana, no caso da impossibilidade de evitá-los, não podem ser lançados diretamente sobre os terrenos desprotegidos. Devem ser conduzidos em estruturas construídas de alvenaria, dutos, escadas d’água, dissipadores de energia hidráulica, etc., até o curso d’água natural ou lago mais próximo, ou estruturas especiais de infiltração (o aqüífero agradece). Uma estrutura artificial que pode ser usada como exemplo auxiliar a esse conceito são os pequenos açudes laterais a estradas rurais para onde, de trecho em trecho, é desviada a água que se concentra sobre a estrada. Esses pequenos açudes propiciam a interrupção do escoamento, a acumulação e uma maior infiltração das águas de superfície (o aqüífero também agradece).
No caso da estabilização de uma boçoroca já desenvolvida, a primeira medida essencial está justamente em impedir que águas superficiais concentradas continuem a escorrer para dentro de sua “cabeça” principal e das “cabeças” de suas eventuais (e comuns) ramificações. Quanto ao interior da boçoroca, a medida essencial é impedir que as águas do lençol e as águas de chuva que ainda aí incidam continuem transportando o solo para jusante. Para tanto são providenciais estruturas/barreiras transversais auto-drenantes (por exemplo, diques de gabião), quantas se fizerem necessárias, que retenham o material eventualmente transportado e permitam que a água se escoe livremente. Essas estruturas não devem ser rígidas (concreto), pois que sofrerão algum natural acomodamento e, sendo rígidas, irão sofrer danos comprometedores.
Interrompidos esses dois processos, o externo e o interno, a boçoroca tenderá a um natural processo de estabilização, que irá evoluir para a recuperação vegetal do terreno afetado. Obviamente o Homem poderá acelerar em muito essa recuperação vegetal.
No entanto, especialmente no meio urbano impõe-se que além da estabilização também se promova a recuperação urbanística do terreno comprometido pela boçoroca. Essa recuperação normalmente é conseguida com o preenchimento da boçoroca por materiais inertes e ambientalmente neutros disponíveis: abatimento dos taludes laterais, solos, entulho de construção civil, resíduos industriais neutros, etc.
Vários técnicos, incluído o autor desse artigo, já não recomendam a instalação no talvegue da boçoroca de um dreno longitudinal de fundo, primeiro por ser desnecessário para a estabilização e depois porque com o preenchimento ter-se-á a oportunidade de recuperar a posição original do Nível d’Água subterrâneo local, antes rebaixado pelo próprio processo de aprofundamento da boçoroca.
A escolha de uma forma de recuperação urbanística da boçoroca dependerá de sua profundidade e tamanho, em uma relação simples de custo-benefício. Uma boçoroca muito grande, de dezenas de metros de profundidade, com várias ramificações, sugere uma recuperação por abatimento de seus taludes naturais e por intenso florestamento, o que lhe permitiria ser transformada em parque de lazer e esportes, por exemplo. Já, boçorocas menores, podem ser recuperadas topograficamente permitindo a instalação de praças públicas, parques infantis, ou equipamentos urbanísticos mais elaborados como quadras esportivas, por exemplo.
De forma alguma deve-se utilizar uma boçoroca (como infelizmente é comum se constatar) para descarte de resíduos industriais ambientalmente nocivos ou para lixo urbano. Esse absurdo significa uma contaminação direta das águas superficiais e subterrâneas.
No Brasil há hoje dezenas de milhares de boçorocas ativas. Um programa de estabilização imediata seria hoje financeiramente impraticável. Mas em termos de cuidados preventivos há todo um arsenal de medidas técnicas (rurais e urbanas) para que se interrompa a “produção” de novas boçorocas. Como também outro arsenal da mesma ordem permite a implementação de um programa de estabilização gradativa e recuperação ambiental das atuais boçorocas. Os custos financeiros, sociais e patrimoniais da atual inação são por demais exorbitantes para que autoridades públicas e privadas continuem a ignorar essa tragédia geológica, triste marca cultural da ocupação do território nacional.
*Álvaro Rodrigues dos Santos, geólogo, Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT e Ex-Diretor da Divisão de Geologia do IPT, Pesquisador Sênior V pelo IPT, Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Cubatão” e “Diálogos Geológicos”
• Consultor em Geologia de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente; Criador da técnica Cal-Jet de proteção de solos contra a erosão
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Autor: *Álvaro Rodrigues dos Santos