O Brasil é reconhecido mundialmente como o país do etanol de cana-de-açúcar. Com razão, pois nenhum país industrializado até hoje conseguiu substituir o uso de gasolina na escala em que aqui foi feito e produzir praticamente metade da energia que consome a partir de fontes renováveis. Dessa metade, 16% vêm do etanol. No Estado de São Paulo, a vantagem é ainda mais marcante: 56% da energia consumida vêm de fontes renováveis, sendo 38% da cana-de-açúcar. O uso do etanol de cana permitiu que São Paulo reduzisse a participação do petróleo na matriz energética estadual de 60% para 33% nos últimos 30 anos.
Desde 1975, a estratégia geral do desenvolvimento do uso de etanol no Brasil foi pautada pelo aumento da produtividade. Efetivamente, o ganho de produtividade tem sido maior do que 3% ao ano nos últimos 40 anos, resultado de melhoramento genético da cana – com o desenvolvimento de variedades mais adaptadas a cada localidade; e do aumento da eficiência industrial da conversão de açúcar em álcool, pela melhoria dos processos de fermentação e destilação.
O crescente interesse mundial pelo uso de biocombustíveis – motivado de um lado pelas dificuldades recorrentes no fornecimento de petróleo e do outro pela crescente preocupação com a emissão de gases de efeito estufa – criou a expectativa de aumento intenso na produção de bioetanol. Um artigo científico, recentemente publicado pelo professor Rogério Cerqueira Leite e colaboradores, mostrou que o Brasil poderia fornecer etanol suficiente para substituir pelo menos 5% da gasolina usada mundialmente. Isso requererá o aumento da produção brasileira dos 22 bilhões de litros produzidos em 2006 para 102 bilhões de litros anuais.
Quando o montante da produção anual começa a assumir valores na casa das centenas de bilhões de litros, aproximando-se do trilhão de litros anuais, impõe-se o desafio da sustentabilidade – ao lado do desafio permanente da produtividade. Produzir etanol requer vários insumos, como água, terra e energia, e o aumento das quantidades pretendidas requer a análise da dependência em relação aos insumos e seu potencial efeito no meio ambiente.
Um dos pontos essenciais para a sustentabilidade é o balanço de energia, que mede quantas unidades de energia são geradas por unidade de energia de origem fóssil utilizada. Na produção de etanol, a energia fóssil é usada, por exemplo, no diesel dos caminhões que transportam a cana da plantação até a usina; ou da usina ao ponto de distribuição. Na plantação se usam tratores e caminhões que consomem mais diesel. Além disso, há o adubo, que em sua fabricação requer mais combustível fóssil. O primeiro trabalho científico feito sobre essa importante questão foi do professor José Goldemberg, publicado na revista Science em 1978, e mostrou as vantagens do etanol de cana.
Mais recentemente, em artigo cientifico de 2008, o professor Isaias Macedo, do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (NIPE), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostrou que com uma unidade de energia fóssil pode-se produzir etanol que gera de 9 a 10 unidades de energia utilizável. O ganho é enorme, praticamente dez vezes mais. Esse balanço energético tão favorável significa que o uso do etanol de cana-de-açúcar ao substituir a gasolina reduz substancialmente as emissões de carbono. Como todos hoje sabem, reduzir emissões de carbono é um dos maiores desafios para a humanidade no século 21. O efeito final é que o uso de etanol no lugar de gasolina reduz emissões em 2.181 kg de gás carbônico para cada mil litros de etanol usado.
Esse balanço energético, tão positivo para o etanol de cana, é muito negativo para o etanol de milho, que os Estados Unidos produzem em grande quantidade. O milho é menos eficiente para produzir combustível líquido – gasta-se uma unidade de energia fóssil para se produzir 1,3 unidade de energia de etanol de milho. Com isso a redução de emissões é bem pequena. Por isso é preciso, quando se trata da sustentabilidade do etanol, explicitar qual a origem do etanol: cana-de-açúcar ou milho.
No uso de água, o etanol de cana-de-açúcar também tem boas características. Um trabalho recente, publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) em 2009, mostrou que etanol de cana requer 99 m3 de água por GigaJoule (bilhão de Joules) de energia produzidos. Já o etanol de milho precisa de 140 m3 de água para a mesma energia gerada.
Outra questão fundamental para a sustentabilidade é sabermos se o aumento na quantidade de etanol produzida pode afetar outros produtos importantes, como, por exemplo, alimentos. Essa objeção aos biocombustíveis tem sido popularmente aceita na Europa e nos Estados Unidos e é fácil entender por que: estas são regiões do mundo nas quais não há fronteira agrícola a ser explorada – toda a terra arável está em uso. Por isso, falar de plantar “fontes de energia” deslocaria plantações de alimentos. Mas na América Latina e na África há muita terra boa ainda disponível. A disponibilidade nessas duas regiões é especialmente positiva, pois são justamente as regiões mais pobres do mundo e nas quais o desenvolvimento vai levar a maiores demandas por energia.
Um estudo recente, feito por cientistas críticos dos biocombustíveis, mostrou que a área disponível na América Latina e África em 2050 seria de 430 milhões de hectares, já descontando a área necessária para produção de alimentos, habitação, infraestrutura e manutenção de florestas. Ora, o Brasil produz 8 mil litros de etanol por hectare/ano. É razoável supor que essa produtividade poderá chegar, em 2050, a 10 mil litros por hectare/ano, como resultado dos esforços de pesquisa sobre melhoramento da cana. Com essa produtividade – e usando apenas a metade dos 430 milhões de hectares disponíveis – a produção anual seria de 2.150 bilhões de litros por ano. Essa quantidade seria suficiente em 2050 para substituir toda a gasolina que, se prevê, será usada naquela data no mundo todo. Portanto, as perspectivas do etanol de cana são grandes, mesmo sem se considerar avanços tecnológicos que certamente acontecerão nos próximos anos.
Finalmente, é preciso lembrar que, como em quase toda atividade humana, pesquisa e desenvolvimento trazem grandes avanços. No Brasil, a produtividade da terra cresceu de 2.700 para mais de 6 mil litros por hectare por ano – mais que o dobro, no período de 30 anos de 1975 a 2005. Isso foi feito usando-se tecnologia incremental a cada ano. Atualmente, muitos países, inclusive os mais desenvolvidos em ciência e tecnologia, como EUA, Inglaterra, França e Holanda, estão empenhados em melhorar a eficiência da biomassa para a geração de combustível líquido. Um dos caminhos promissores parece ser o da conversão de celulose em etanol ou outros combustíveis.
Outro, já muito usado no Brasil, é o uso da celulose para geração de eletricidade. Por causa disso, a intensidade de pesquisa sobre biocombustíveis cresceu muito e o panorama é muito mais competitivo do que quando praticamente só o Brasil usava etanol.
Essa mudança mundial encerra um perigo e uma promessa. O perigo é que outros países descubram mais depressa do que nós como produzir biocombustíveis mais eficientemente, o que tiraria do Brasil a liderança mundial que o país conquistou por começar antes de todos. Entretanto as vantagens da cana e a dianteira que temos parecem indicar que, se o Brasil for responsável e aumentar a intensidade de pesquisa científica e tecnológica sobre o etanol de cana, poderemos continuar entre os primeiros do mundo nesse campo.
O Governo Federal, o Governo de São Paulo (onde se produz 2/3 do etanol produzido no Brasil) e empresas estão tomando medidas para aumentar o esforço de Pesquisa e Desenvolvimento, seja em áreas básicas da ciência que podem levar a avanços radicais e de enorme impacto, seja em áreas aplicadas que sempre trazem avanços incrementais.
A promessa é que os avanços científicos aumentem a produtividade de forma radical. O uso da celulose, se tiver viabilidade econômica, o que parece ocorrerá em alguns anos, vai aumentar muito a produtividade da cana, pois 2/3 da energia na cana estão na celulose e hoje somente o terço que está no açúcar é usado para produzir etanol. Além disso, há muito a ganhar na produtividade da cana: até hoje, o aumento da produtividade foi alcançado com técnicas de genética tradicional. Somente desde poucos anos atrás, quando a FAPESP criou o programa SUCEST, a busca pelo aumento da produtividade começou a ser feita com base em técnicas de genômica.
Os resultados do SUCEST já permitem identificar genes responsáveis por resistência à seca (e, portanto, menor uso de água), resistência a pragas e conteúdo de sacarose. Há muito ainda a ser feito. Processos fundamentais como a fotossíntese e a fixação de carbono no solo também precisam ser muito mais estudados. Ou seja, há uma ampla pauta de ciência e tecnologia que o Brasil precisa desenvolver para se manter na liderança. Instituições como o Instituto Agronômico de Campinas, o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) de Piracicaba, as universidades estaduais paulistas, a rede de universidades federais para desenvolvimento do setor sucroalcooleiro que compõem a RIDESA, o recém-inaugurado Laboratório Nacional de Bioetanol (CTBE) em Campinas, o Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia, que será criado nas três universidades estaduais paulistas, e o Programa BIOEN, de pesquisas sobre bioenergia, serão determinantes para o futuro desenvolvimento da bioenergia no Brasil. O fato novo é que, talvez pela primeira vez na história do país, existe um tema em ciência e tecnologia no qual temos mais conhecimento do que o resto do mundo e com mais resultados aplicados. Manter essa liderança requer um substantivo aumento da intensidade de P&D estatal e privada nas áreas relevantes.
* Carlos Henrique de Brito Cruz é professor titular no Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro da Academia Brasileira de Ciências. Foi reitor da Unicamp e presidente da FAPESP.
Autor: *Carlos Henrique de Brito Cruz