O Brasil pode aproveitar o boom dos automóveis elétricos para criar uma indústria própria diante da iminente crise climática e petrolífera e da morte anunciada do motor à explosão.
O veículo elétrico, híbrido ou puro, provocará uma revolução industrial e energética no mundo nas próximas décadas, golpeando em especial os combustíveis líquidos. Mas o etanol vegetal sobreviverá e crescerá, afirmam especialistas brasileiros ouvidos pelo Terramérica. A atual indústria automobilística “estará sepultada dentro de 15 anos” se a produção chinesa de carros elétricos atingir suas metas, estima o economista Gustavo dos Santos, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Dessa forma, a expansão do etanol (mais limpo do que a gasolina) será menor do que a esperada pelo governo brasileiro e será interrompida em 2020, prevê Santos.
A montadora chinesa BYD (Build Your Dreams – Construa seus Sonhos), que começou como uma fábrica de baterias, espera vender 700 mil carros elétricos em 2010, e tem como meta elevar sua produção anual para oito milhões de unidades até 2025, metade para exportação, disse Santos ao Terramérica. O governo da China decidiu converter o país em uma potência automobilística e subsidia a venda de veículos elétricos ou híbridos, que combinam bateria e motor de combustão. O avanço destes novos carros, de maior eficiência energética do que os que utilizam apenas combustão, foi bloqueado desde seu nascimento pelo grande poder político das companhias de petróleo, recordou Santos. Inclusive o setor automotivo resiste às mudanças porque elas representam a perda de toda uma estrutura implantada durante mais de um século.
Entretanto, agora a ameaça da mudança climática tende a tornar “inevitável” a revolução da energia e de toda cadeia metal-mecânica, com consequências em outras duas indústrias centrais, a eletroeletrônica e a química, e no ordenamento urbano, disse o economista. Os gases emitidos pelo transporte automotivo baseado em derivados de petróleo, como gasolina e diesel, aquecem a atmosfera. No mundo, teve início uma corrida tecnológica que se reflete nos numerosos modelos elétricos exibidos no 63º Salão do Automóvel de Frankfurt – que começou no dia 17 e vai até o dia 27 deste mês – reiterando a tendência de mostras semelhantes. Praticamente, todas as grandes fábricas estão produzindo esse tipo de veículo.
Os governos de países ricos subsidiam em grande parte o desenvolvimento e a venda desses carros. A General Motors, salva da bancarrota pela intervenção do governo norte-americano, espera se recuperar com a venda de seu modelo Volt, um híbrido recarregável que poderá desequilibrar o jogo porque “não tem compromissos com a indústria petrolífera nem com a velha indústria automobilística”, afirma Santos em um artigo publicado na edição junho-julho da revista Custo Brasil. O objetivo da China de popularizar o automóvel, necessário para manter o crescimento econômico atual, se torna impossível com o petróleo devido à insuficiência da oferta mundial, acrescentou o economista.
As baterias, ainda muito grandes e caras, exigem muitas horas de recarga para percorrer trechos limitados, e continuam sendo o calcanhar-de-aquiles do carro elétrico. Porém, sua adequação é apenas questão de tempo, porque ao seu desenvolvimento são destinados grandes investimentos pelas indústrias automobilísticas, de informática e de telefonia celular. Santos acredita que o futuro depende “mais das disputas políticas do que de fatores técnicos”. Além das pressões de toda a cadeia metal-mecânica e das companhias de petróleo, Estados Unidos, Europa e Japão tentarão impedir que a China se converta em uma potência automobilística, diz o economista, acrescentando que não se deve descartar uma reação protecionista que poderia jogar o mundo em outra recessão.
O carro elétrico pode promover uma revolução tecnológica que impulsionaria os investimentos, sustentando um crescimento ambientalmente são, ao “destruir boa parte da capacidade produtiva mundial”, diz Santos. A partir de uma fonte de redução do consumo, o preço do petróleo começaria a cair dentro de aproximadamente dez anos. Em consequência, o Brasil tem pouco tempo para aproveitar as gigantescas reservas descobertas, em 2007, sob uma camada de sal em águas profundas do Oceano Atlântico, ressaltou.
Paulo César Lima, assessor da Câmara dos Deputados especializado em questões energéticas, concorda com Santos. Com base em previsões do setor, segundo as quais 30% dos veículos a serem fabricados em 2030 serão elétricos, Lima alerta que a extração das jazidas do pré-sal poderia ser inviável dentro de quatro décadas devido ao baixo preço que o petróleo teria. Descoberto a cerca de sete mil metros de profundidade, o óleo brasileiro terá custos muito altos de produção, cerca de US$ 40 por barril de 159 litros, segundo autoridades da área energética. O “fator determinante”, para Lima, será a questão ambiental, que forçará a vigência do veículo elétrico. Este, por sua vez, “pode afetar o mercado do etanol” e sua passagem à categoria de commodity (mercadoria de livre comercialização), prevê o especialista.
Porém, a revolução tecnológica não impedirá a sobrevivência e expansão do etanol, pois este reduz a emissão de gases causadores do efeito estufa, acrescenta Lima. O etanol brasileiro feito a partir da cana-de-açúcar é reconhecido por seus benefícios ambientais, ao contrário do obtido do milho e de outras matérias-primas agrícolas nos Estados Unidos e na Europa. Contudo, enfrenta críticas pelas penosas condições de trabalho nos canaviais e por ocupar espaços de cultivos de alimentos.
A substituição do combustível líquido “será um processo lento”, e por muito tempo vai predominar o carro híbrido, que emprega motor a combustão para gerar a eletricidade propulsora, prevê Pietro Erber, presidente da Associação Brasileira do Veículo Elétrico. Para o híbrido, o etanol oferece vantagens sobre os derivados de petróleo, especialmente o diesel que é importado pelo Brasil para abastecer caminhões e ônibus, acrescenta. Essa vantagem pode ser ampliada se o petróleo for taxado para desestimular seu consumo e em benefício do clima, afirma Erber.
Jayme Buarque de Hollanda, diretor do não governamental Instituto Nacional de Eficiência Energética, afirma que o petróleo perderá mercado, mas não o etanol, pois é um combustível “mais homogêneo” e por isso se mistura com a gasolina para melhorar o desempenho e reduzir a poluição. Além disso, não se trata apenas do etanol, mas da biomassa como fonte de energia renovável e menos poluente. A partir da cana também se gera eletricidade, com o bagaço, além da produção de açúcar e vinhaça fertilizante, destaca Jayme. O uso diversificado da biomassa é uma vocação do Brasil, que possui água, sol e terra em abundância. Existe pela frente um futuro amplo de pesquisa e desenvolvimento para substituir boa parte dos “três mil produtos obtidos a partir do petróleo”, acrescenta Fernando Siqueira, presidente da Associação de Engenheiros da Petrobrás.
Para esse futuro, o Brasil deveria investir em células de combustível, destinadas a substituir as baterias, segundo Santos. Este dispositivo eletroquímico converte a energia do combustível em eletricidade com maior eficiência do que a bateria e daria ao etanol viabilidade no longo prazo, diante da morte anunciada do motor à explosão. Para o economista, a atual mudança de modelo, ao reduzir obstáculos permite uma singular oportunidade para que o país crie, como a China, uma indústria automobilística nacional de carros elétricos com marca própria. Para isso dispõe de enormes recursos energéticos e de capacidade tecnológica, concluiu Santos.
* Este artigo é parte de uma série produzida pela IPS (Inter Press Service) e pela IFEJ (sigla em inglês de Federação Internacional de Jornalistas Ambientais) para a Aliança de Comunicadores para o Desenvolvimento Sustentável http://www.complusalliance.org
Autor: Terramerica – Por Mario Osava – IPS/IFEJ