As obras de engenharia devem sempre considerar os efeitos de chuvas intensas.
E as barragens não são exceções
MAIS UMA vez a engenharia brasileira se viu diante de uma tragédia. Agora foi o rompimento da barragem de
Algodões, no Piauí, em 27/5.
Desde o ano passado, Algodões era uma barragem doente, que apresentava problemas sérios. Os responsáveis demoraram no diagnóstico e subestimaram a doença. O remédio veio fraco e tardio. Com a confirmação de pelo menos sete pessoas mortas, esse foi o maior acidente com barragens já registrado no país.
Mais uma vez a chuva foi rapidamente apontada como a culpada pelos governantes, pelos responsáveis e pelos irresponsáveis. O rompimento da barragem e a inundação resultante foram classificados como súbitos ou inesperados. São argumentos que não se sustentam quando avaliados com um mínimo de seriedade.
As obras de engenharia devem sempre considerar os efeitos de chuvas intensas. E as barragens não são exceções. Pelo contrário, são projetadas para resistir à pior inundação prevista para acontecer em milhares de anos.
Anualmente, muitas barragens rompem no país. Em reunião técnica realizada na ANA (Agência Nacional de Águas), horas antes da tragédia do Piauí, falou-se em 800 acidentes ou incidentes com barragens brasileiras nos últimos oito anos. Ou seja, em média, a cada três ou quatro dias, uma barragem apresenta graves problemas no Brasil. A grande maioria sem divulgação na mídia nacional.
Nesse cenário alarmante, com a população passando a temer as barragens, pode parecer contraditório afirmar que a nossa engenharia de barragens é uma das mais conceituadas do mundo. Sabemos projetar e construir barragens seguras, com tecnologia que nada fica a dever a nenhum país. A culpa desses inúmeros acidentes pode ser atribuída à má gestão. Existem hoje no Brasil centenas de barragens sem dono, sem um responsável privado ou governamental. Centenas de barragens abandonadas, sem vistorias, sem avaliação, sem monitoramento, sem manutenção. Precisamos urgentemente regulamentar a segurança das barragens.
No Brasil, políticos e governantes não dão importância à gestão das barragens. Se dessem, já teriam aprovado um projeto de lei sobre o assunto (PL 1181/03), que tramita há anos e sem pressa na Câmara dos Deputados.
Segurança de barragens tem sido tema frequente de encontros técnicos no Brasil, reunindo os maiores
especialistas nacionais e estrangeiros. Como resultado, em dezembro de 2008, duas tradicionais entidades da nossa engenharia, o CBDB (Comitê Brasileiro de Barragens) e a ABMS (Associação Brasileira de Mecânica dos Solos e Engenharia Geotécnica), lançaram uma carta aberta, com recomendações relevantes sobre o assunto. A criação de um órgão específico, tal como uma comissão federal sobre segurança de barragens, é de extrema importância para definir responsabilidades e implantar procedimentos padronizados. É assim nos principais países desenvolvidos.
Um bom exemplo vem de Minas Gerais. Após a ruína da barragem da Mineração Rio Verde, em 2001, a pressão da sociedade levou a Secretaria do Meio Ambiente a implantar um programa estadual de segurança. Foram estabelecidos os requisitos para a concessão e a renovação de licenças das barragens de mineradoras classificadas com maior potencial de dano.
Os proprietários devem apresentar um plano de ações emergenciais, delimitando a área afetada no caso de eventual rompimento. E devem ainda apresentar anualmente um relatório de segurança, emitido por especialista independente. O órgão ambiental tem poder para negar a licença se os requisitos não forem atendidos.
No caso de Algodões, a emergência fora anunciada no início de maio, quando milhares de residentes foram removidos das áreas a jusante da barragem. A decisão sobre o eventual retorno das famílias não poderia ser tomada em ambiente de pressões sociais e políticas. A situação requeria uma avaliação especializada, com um painel independente de técnicos.
Na área da saúde, uma emergência sobre pandemia é tomada em reunião de médicos especializados. Na Justiça, as decisões são tomadas por magistrados e juízes. Mas a nossa engenharia anda mesmo sem prestígio: a decisão sobre o risco de ruptura da barragem Algodões foi tomada por um engenheiro cercado de políticos, bombeiros e leigos. As vidas dos moradores foram decididas numa reunião de fundo político.
A situação da segurança das barragens permanece indefinida. As autoridades precisam se sensibilizar para não repetir erros. Talvez a grande tragédia de Algodões possa ao menos contribuir para reverter a situação.
*ALBERTO SAYÃO, doutor em engenharia civil, é professor da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e ex-presidente da ABMS (Associação Brasileira de Mecânica dos Solos e Engenharia Geotécnica). [email protected]
Autor: *Alberto Sayão