De volta aos trilhos

As ferrovias representam uma das mais eficientes opções de transporte, especialmente de carga, em países com dimensões continentais. Felizmente – como mostra o exemplo da China -, ainda dá para recuperar o tempo perdido 

Uma das respostas mais incisivas que o governo chinês deu à chegada da crise econômica ao país foi o anúncio de um pacote de investimentos em infraestrutura de transporte de 264 bilhões de dólares. É uma mensagem clara: os chineses elegeram a melhoria da logística como forma de ganhar competitividade para os tempos de crise e, naturalmente, para depois que ela passar. 

Uma parcela substancial dessa reação se materializa no maior programa de obras ferroviárias do planeta. Nada menos que 88 bilhões de dólares deverão se transformar em estradas de ferro, locomotivas e vagões nos próximos anos. As novas linhas serão agregadas à malha já existente de 66 000 quilômetros, que corta as regiões mais populosas da China. 

Os chineses repetem hoje os maciços investimentos que Estados Unidos e países europeus fizeram em ferrovias no século 19 e dos quais até hoje se beneficiam. Mostra, com isso, que ter perdido o trem no passado não implica ficar acomodado no atraso – uma lição à qual o Brasil deve prestar atenção, porque as ferrovias ainda são a principal solução para o deslocamento em massa de cargas e de pessoas em países de grande dimensão. 

Aqui, durante décadas não se construiu um único quilômetro de trilho novo – apesar do evidente ganho em termos de custo de transporte . Agora, finalmente, há acenos de uma retomada na expansão da malha ferroviária. Está em gestação um novo lote de projetos de quase 10 000 quilômetros de estradas de ferro, obras que demandarão mais de 23 bilhões de reais. Além disso, cerca de 10 bilhões deverão ser investidos até 2015 por operadoras privadas na modernização da malha sob concessão. Esse dinheiro pode atenuar o enorme descompasso entre o Brasil e as demais nações continentais. Somos, de longe, o menos servido por ferrovias. 

Cálculos da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários indicam que o país precisaria de 52 000 quilômetros para cobrir seu território de forma eficiente. Hoje, a malha brasileira, que chegou a ter 37 000 quilômetros de extensão nos anos 50, conta com 28 831 quilômetros, dos quais apenas 40% – cerca de 11 000 quilômetros – estão em condições de uso. 

Um dos efeitos nocivos do pouco investimento no passado foi a distância criada entre as linhas existentes e a nova geografia do desenvolvimento no país. Quase metade da malha é concentrada nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. 

Com o avanço da produção agrícola em direção ao Centro-Oeste, parte significativa da carga passou a viajar de caminhão. Cerca de 60% da soja brasileira enfrenta rodovias precárias antes de chegar ao destino final. E a tendência é que a produção continue a avançar na porção mais ao norte do país. 

Nessas regiões, a chegada de novas ferrovias pode facilitar e baratear o escoamento de commodities como soja e milho, bem como de fertilizantes no percurso de volta. Há nítida vantagem de eficiência em favor da ferrovia: o custo para transportar 1 000 toneladas de carga de caminhão é de 271 reais por quilômetro, ante 44 reais no transporte por trem, segundo cálculos da consultoria Macrologística. 

Nem toda diferença é repassada pelas ferrovias para os clientes. As concessionárias de ferrovias, devido ao modelo de privatização adotado, detêm uma espécie de monopólio de seus caminhos. “Para baixar os preços, seria preciso instituir o direito de qualquer operador trafegar nos trilhos do outro”, diz Paulo Fleury, diretor do Instituto de Logística da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Uma mudança nesse sentido está em estudos na Agência Nacional de Transportes Terrestres. Mesmo sem ela, uma nova ferrovia pode reduzir o custo do frete ao menos em 30% – é o que prevê a estatal Valec, no caso da futura ferrovia que ligará o oeste da Bahia ao litoral do estado. 

Para o país, os ganhos são indiscutíveis. O uso dos trens ajuda a descongestionar as principais rodovias – uma única composição com 60 vagões substitui 214 caminhões pesados -, liberando espaço para o transporte de passageiros e de cargas mais sofisticadas, como as de produtos eletrônicos, que precisam ir por estradas. Há também ganhos ambientais, pois os trens consomem menos combustível que os caminhões. 

“Quanto mais o país cresce, mais sobrecarregadas ficam as estradas com cargas que poderiam estar em ferrovias”, diz Rodrigo Vilaça, diretor executivo da ANTF. Hoje, 26% da carga brasileira passa sobre trilhos, um avanço em relação aos 19% do final dos anos 90, mas ainda pouco perto dos 46% dos Estados Unidos. A esperança é que grandes projetos melhorem o índice. A principal obra do setor em construção é a extensão da ferrovia Norte-Sul. 

Quando estiver totalmente concluída, com 2 254 quilômetros, atravessará os estados de Maranhão, Tocantins e Goiás e alcançará São Paulo, onde se ligará à rede existente. A obra de quase 7 bilhões de reais é uma das vitrines do Programa de Aceleração do Crescimento. Outro trecho aguardado com ansiedade pelo setor produtivo são os 262 quilômetros em Mato Grosso que ligarão Rondonópolis, um dos principais centros produtores de soja do estado, ao terminal de Alto Araguaia, de onde parte uma linha em direção ao porto de Santos. 

O trem é melhor Essas iniciativas são um alento para um setor ainda carente de investimentos. A maior parte da base existente foi construída pela iniciativa privada até 1930, e posteriormente estatizada por Getúlio Vargas. A partir daí, as estradas de ferro foram sucateadas. Apenas em 1996, quando ocorreu a privatização do sistema, os investimentos na antiga malha federal foram reiniciados pelos novos operadores. Mas problemas históricos têm limitado a ampliação das ferrovias no Brasil. A diversidade de tipos de trilho impede a integração operacional entre várias linhas. 

O grosso da malha ainda segue o traçado original, de até 150 anos, contornando montanhas para evitar a construção de pontes e túneis, o que reduz a velocidade média das composições. Outra razão para a lentidão dos trens de carga – andam em média a 28 quilômetros por hora, ante 60 na média chinesa – são as invasões de favelas nas áreas que margeiam as linhas. 

Apesar das notícias até certo ponto animadoras, ainda falta dar mais coesão às iniciativas. Enquanto as obras da Norte-Sul caminham no cronograma, não há previsão de conclusão do Terminal de Grãos do Maranhão, que armazenaria no porto de Itaqui os grãos transportados pela ferrovia. “Enquanto a China investe 4% do PIB em transporte, e a Índia, 3%, o Brasil não dedica nem 0,5%.

 Não dá para esperar um milagre”, diz Renato Pavan, diretor da Macrologística. Junto com a expansão das ferrovias de carga, surgem também os projetos de trens de alta velocidade para o transporte de passageiros. O projeto do trem-bala entre Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro está em fase de estudos econômicos. Outras duas ligações de alta velocidade começam a ser avaliadas pelo governo: São Paulo-Curitiba e São Paulo-Belo Horizonte.

 “Todo novo projeto de ferrovia acaba beneficiando o setor, pois atrai novos investidores e fabricantes para o negócio”, diz Bernardo Hees, presidente da ALL, maior operadora de ferrovias do Brasil. E, dado o atraso em relação ao resto do mundo, qualquer novo quilômetro construído no país será muito bem-vindo.

Autor: Exame