O transporte coletivo urbano de passageiros é um serviço público, conforme estabelece o inciso V, do artigo 30 da Constituição Federal, quando dispõe que cabe ao Município “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”. Esse conceito foi ainda valorizado, posteriormente, em 2015, com seu enquadramento no artigo 6° da mesma Carta Magna, como direito social.
O dispositivo constitucional estabelece, ainda, no seu inciso I, a atribuição do Município de legislar sobre os serviços de interesse local, como os referentes a mobilidade urbana da população, caso dos serviços privados de transporte, de utilidade pública ou não, os quais deverão ser autorizados pelo poder público competente.
Não bastasse essa base legal, os serviços de transporte de passageiros também são regulados pela Lei Nº 12.587/2012 e suas alterações posteriores, que instituiu as diretrizes para a Política Nacional da Mobilidade Urbana e permitiu diferenciar serviços de transporte público, serviços de utilidade pública e serviços de transporte privado de passageiros.
Os serviços de transporte público coletivo de passageiros são aqueles disciplinados no inciso VI, do artigo 4º, da citada Lei da Mobilidade. Aplicam-se aos serviços de transportes realizados pelos trens, barcos, metrôs e ônibus, cuja operação pode ser realizada por empresa pública ou empresa privada, respeitado o artigo 175 da Constituição Federal que estabelece: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.
Já os serviços de utilidade pública são os de transporte individual de passageiros, como o táxi, previstos nos artigos 12 a 12-B, os quais são prestados mediante cumprimento de requisitos emanados do poder público local, sem, necessariamente, serem submetidos a um processo licitatório, como é a exigência para o transporte público coletivo de passageiros.
Ainda sob o ponto de vista legal, essa mesma legislação estabeleceu condições para a prestação dos serviços de transporte privado de passageiros, que deverão ser autorizados, disciplinados e fiscalizados pelo poder público. Para os serviços privados de transporte individual, que são serviços remunerados, não abertos ao público, a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas, solicitadas exclusivamente por usuários, previamente cadastrados em aplicativos ou em outras plataformas de comunicação em rede, a legislação estabeleceu uma série de outros requisitos, conforme consta dos artigos 11-A e 11-B.
Isso significa dizer que, nos moldes da legislação aplicável, o transporte urbano é um dever do Estado e um direito do cidadão. Nesses termos, os serviços de transportes de passageiros são de inteira responsabilidade do poder público, embora a operação, propriamente dita, possa ser contratada com a iniciativa privada, que firmará com a autoridade delegatária o devido contrato de concessão ou de permissão. No caso dos serviços de utilidade pública ou serviços de transporte privado de passageiros, prestados por terceiros, cabe ao poder público local regulamentar e disciplinar a matéria, em todos os seus aspectos legais, operacionais e econômicos, à luz da citada legislação e da competência legislativa do Município.
O serviço de mototáxi, que se caracteriza por ser um serviço de transporte privado de passageiros, é prestado por cerca de 2,3 milhões de “motociclistas parceiros”, das plataformas 99-Moto e UBER-Moto, em mais de 3.400 cidades brasileiras (62% dos municípios brasileiros), incluindo a maioria das capitais. O serviço é prestado de forma desregulamentada ou mediante um regramento muito precário, sem a devida fiscalização.
Na maioria dessas cidades, esse transporte é feito sem nenhuma normatização e com total desrespeito à Resolução CONTRAN Nº 940, de 28 de março de 2022, que disciplina o uso obrigatório de capacete, para o condutor e para o passageiro, em motocicletas, motonetas, ciclomotores, bem em triciclos e quadriciclos motorizados.
A Lei Federal Nº 12.009, de 29/07/2009, que “regulamenta o exercício das atividades dos profissionais em transporte de passageiros, “mototaxista”, em entrega de mercadorias e em serviço comunitário de rua, e “motoboy”, com o uso de motocicleta…” não é um instrumento legal suficiente para disciplinar e regular a prestação de um serviço de transporte de pessoas, em condições arriscadas de segurança, para o condutor e para o passageiro, com critérios adequados de higiene, desinfecção e sanitização do capacete, para evitar a propagação de doenças transmissíveis.
Mas, o serviço de mototáxi, principalmente em cidades de grande porte, que têm trânsito intenso, em vias congestionadas, não deve ser considerado um sistema de transporte de passageiros, que possa operar em condições, minimamente, aceitáveis. O inevitável aumento do número de acidentes – boa parte deles, com vítimas fatais – que vão sobrecarregar o sistema público de saúde, o uso compartilhado do capacete – obrigatório, nos termos da Resolução CONTRAN Nº 940/2022 – que pode se tornar um vetor de propagação de doenças infectocontagiosas, e a necessidade de um enorme contingente de agentes de fiscalização, para acompanhar a operação desse serviço e evitar o permanente desrespeito às normas e regras que regem esse modo de transporte, são motivos mais do que suficientes para não autorizar esse tipo de operação, em cidades de médio e grande portes.
Enganam-se aqueles que se deixam levar pelo argumento que o mototáxi é um modo eficiente, rápido e barato de deslocamento das pessoas e só existe onde o transporte coletivo regular é insuficiente ou não atende às necessidades da população. Trata-se, na verdade, da tentativa de se implementar um modelo de negócio, altamente lucrativo para as plataformas de aplicativos, totalmente privado, sem regulamentação e fiscalização, regido por leis de mercado. Portanto, não estamos diante de um problema de transporte urbano; mas sim, de uma nova atividade econômica, sem nenhum controle do poder público. Essa questão pode ser caracterizada, muito bem, como um falso dilema!
Além disso, o mototáxi é um tipo de serviço que cria uma competição predatória com o transporte público regular das cidades, captando os passageiros de curta distância e não atuando em regiões de difícil acesso ou onde a demanda é rarefeita. É a total subversão de tudo o que se aplica na caracterização do transporte de passageiros, como um serviço público, com regras estabelecidas pelo poder público e operado com segurança, conforto, confiabilidade, regularidade e a preços módicos.
Finalmente, é de se estranhar que empresas de aplicativos insistam na operação desse serviço, com interpretações descabidas das normas vigentes e ao arrepio da legislação aplicável, com descarado enfrentamento às autoridades municipais, sob o argumento que estão oferecendo um serviço que interessa à população e que pode ser prestado sem nenhuma interferência do poder público.
Trata-se, isso sim, da obtenção de resultado financeiro, usando a boa fé e a ingenuidade das pessoas que, por um trocado a menos, na pressa de chegar ao seu destino e por total desconhecimento dos perigos envolvidos, colocam a sua própria vida em risco.
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(*) Francisco Christovam é Diretor Executivo (CEO) da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU, Vice-Presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo – FETPESP e da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, bem como membro do Conselho Diretor da Confederação Nacional do Transporte – CNT e membro do Conselho Deliberativo do Instituto de Engenharia