O aniversário de 50 anos da assinatura do tratado entre Brasil e Paraguai para a construção e a operação da usina binacional de Itaipu, no Rio Paraná, nesta quarta-feira (26), marca dois momentos históricos, afirmam especialistas.
Olhando para trás, o tratado referenda o que setor de energia qualifica como triunfo da “engenharia diplomática”. Olhando para frente, marca outra negociação, a do início da revisão das bases financeiras da usina e, consequentemente, do preço da energia.
O tratado tem 25 artigos e conta com três anexos que detalham questões específicas. O anexo A traz o estatuto da entidade binacional Itaipu. O anexo B trata das instalações destinadas à produção de energia. O anexo C traz as bases financeiras e de prestação dos serviços.
“Itaipu é uma empresa extraordinária que tem três compromissos importantes: os consumidores, a relação bilateral com o Paraguai e os interesses regionais no Paraná. Porém, é o consumidor que paga por tudo. A negociação do anexo C precisa manter o equilíbrio desses três pilares, mas sempre respeitando o consumidor”, afirma Celso Torino, que foi diretor técnico executivo de Itaipu e é vice-presidente da Cier (Comissão de Integração Energética Regional), organização que reúne representantes da área de energia nas Américas do Sul e Central, além do Caribe.
Segundo o Instituto Acende Brasil, como os sócios têm porte e históricos muito diferentes, os números mostram que os termos do acordo exigiram mais do lado brasileiro. De acordo com uma lei que também faz 50 anos em 5 julho de 1973, consumidores das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste são obrigados a pagar pela energia de Itaipu.
Levantamento da entidade mostra que, de 1985 a 2021, data do último balanço da empresa, o Brasil pagou US$ 83,2 bilhões (R$ 420,9 bilhões) a Itaipu. O Paraguai, por sua vez, recebeu lucros de US$ 5,9 bilhões (R$ 29,8 bilhões).
“Poucas pessoas se dão conta disso”, diz Claudio Sales, presidente do Acende Brasil. “A combinação do que o Paraguai recebe de royalties, remuneração de capital e ressarcimentos dá um volume de dinheiro que é mais do que suficiente para ele pagar pela energia de Itaipu.”
Há outras razões para explicar a diferença. O financiamento para obra da usina foi um project finance, modalidade em que a dívida é quitada por meio do fluxo de caixa do próprio projeto —nesse caso, via tarifa de energia compulsória.
“No montante de recursos e no prazo, o project finance de Itaipu foi o maior do mundo”, diz Altino Ventura Filho, que comandou Itaipu de 1996 a 2002. Foram US$ 12 bilhões (R$ 60,7 bilhões), mas por causa dos juros acumulados durante a obra, o empréstimo totalizou US$ 19 bilhões (R$ 96,1 bilhões).
Pelo tratado, a energia é dividida meio a meio. No entanto, o Paraguai não consome toda a sua parte, e obrigatoriamente vende para o Brasil.
No último balanço da empresa, 76% da energia de Itaipu ficou com o Brasil, e o país foi responsável por 86% das receitas da usina. Considerando todas as operações financeiras naquele ano, 98% do custo total foi arcado pelo lado brasileiro, segundo o Acende Brasil.
Há mais um diferencial. Pelo acordo, Itaipu não deve gerar lucro. O preço cobrado pela energia cobre os custos para a usina cumprir com suas obrigações para operar. Sem a dívida, que representava 64% dos custos em 2021, há excedente financeiro —e seu destino alimenta debates.
Em entrevista à Folha, o novo diretor-geral de Itaipu, Enio Verri, defendeu que parte deve permanecer com Itaipu para financiar projetos socioambientais. Verri quer estender o uso dos recursos, hoje restritos ao oeste do Paraná, para todo o estado.
Já seguindo essa estratégia, a tarifa de Itaipu caiu neste ano menos do que poderia. Diferentes estudos mostraram que, com o fim da dívida, a tarifa poderia ficar entre US$ 10 e US$ 12 pelo kw (R$ 50 e R$ 60 por kilowatt). O valor fixado foi de US$ 16,71 (R$ 84,5) porque cerca de US$ 460 milhões (R$ 2,3 bilhões) foram canalizados para projetos.
O tema gerou tanto desconforto que o Senado avalia pedir explicações à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).
Algo semelhante já havia sido feito com cerca de US$ 300 milhões (R$ 1,5 bilhão durante a gestão bolsonarista.
Entidades que representam consumidores querem que o excedente seja usado para reduzir a tarifa.
“Hoje vivemos um cenário de sobras de energia no Brasil, e a de Itaipu é das mais caras”, afirma Paulo Pedrosa, presidente da Abrace (Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres). “Poderia ser reduzida em quase dois terços se abatido o pagamento do financiamento.”
Se não for possível canalizar todo o excedente para a tarifa, há quem defenda que, do lado brasileiro, os recursos passem a ser geridos pela União.
“Caso o governo, por razões superiores, decida capturar para si os recursos, eles devem ser direcionados à União”, diz José Luiz Alquéres, ex-conselheiro de Itaipu e hoje conselheiro para área de energia do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais). “Mas jamais podem ser utilizados para atender interesses regionais, como temos visto, para construir mercadinhos, prédio da aduana e coisas que competem a outras instâncias de governo.”
Outros segmentos querem que a energia de Itaipu possa ser negociada pelas regras do setor privado.
A Acende Brasil defende que a revisão do anexo C permita que cada país possa comercializar a sua parcela de energia internamente, por meio de leilões, nos diferentes mercados. Hoje, Itaipu abastece o chamado mercado cativo, onde se conectam essencialmente consumidores residenciais, principalmente os mais pobres, e pequenas empresas.
Linha semelhante é defendida pela Abraceel (Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia), que quer a energia de Itaipu no mercado livre, onde preços e prazos de fornecimento são negociados livremente entre as partes.
“É muito importante que essa energia barata e renovável chegue à indústria, que gera emprego e renda, e majoritariamente no mercado livre “, afirma Rodrigo Ferreira, presidente-executivo da Abraceel.
Passados 50 anos, é inegável, dizem historiadores, que o tratado tenha sido fundamental para o projeto que abriu caminho para a constituição da empresa Itaipu, em 17 de maio de 1974, e para construção da hidrelétrica, que começou em 1975. Mas o fim das Sete Quedas, o forte impacto ambiental, o alto custo e o porte avantajado da obra só vingaram, segundo estudiosos, porque foram encampados por presidentes de regimes de ditadura. Assinam o tratado os generais e presidentes Emílio Garrastazu Médici, do Brasil, e Alfredo Stroessner, do Paraguai.
Não por coincidência, as usinas que rivalizam com Itaipu estão na China.
O historiador Paulo Brandi, pesquisador do Centro de Memória da Eletricidade, lembra que foram necessários 20 anos de discussões técnicas sobre o aproveitamento do rio, e que os dois países só alcançaram um meio-termo em 1966, com a “Ata de Foz do Iguaçu” ou “Ata das Cataratas”, que definiu as características binacionais da área.
“O tratado de Itaipu foi o início de uma nova etapa nas relações internacionais da região’, diz Micael da Silva, professor de História das Relações Internacionais na Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana). “Estabeleceu uma nova política de Estado nestes 50 anos.”
Fonte: Folha de S.Paulo