Alguns Aspectos do Programa Nuclear Brasileiro

O Brasil iniciou seu caminho na área da tecnologia nuclear em 1946, quando o então Capitão-de-Mar-e-Guerra e professor catedrático da Escola Naval, Álvaro Alberto da Motta e Silva, foi designado para chefiar a delegação brasileira na recém-criada Comissão de Energia Atômica das Nações Unidas (UNAEC), onde tiveram início as discussões mundiais tendo como tema a geopolítica nuclear. Álvaro Alberto presidiu o órgão no biênio 1946-1947 tendo percebido a importância do domínio da tecnologia nuclear para o Brasil, visto até então como um simples fornecedor em potencial de minério radioativo para os Estados Unidos.

Em 1948, ao regressar ao Brasil, já Almirante, assumiu a coordenação da comissão encarregada pelo Presidente Dutra de elaborar o anteprojeto para o Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq). No período de 1949 a 1951 foi presidente da Academia Brasileira de Ciências, e na criação do CNPq por Getúlio Vargas em 1951, foi nomeado seu presidente, dando sempre grande importância ao tema da energia nuclear. Em 1956 foi instituída a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Durante esse período, foi criado o Instituto de Pesquisas Radioativas – IPR na UFMG em Belo Horizonte (1952), atual Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear – CDTN; o Instituto de Energia Atômica – IEA na USP em São Paulo (1957), atual Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares – IPEN; e, mais adiante, o Instituto de Engenharia Nuclear – IEN, no Rio de Janeiro, no campus da UFRJ (1962). Tudo isso concomitante com o movimento mundial do lançamento do Programa Átomos para a Paz (1953 – EUA) e à criação da Agência Internacional de Energia Atômica (1957-ONU). Um pouco mais tarde (1971) foi criado o Instituto de Radioproteção e Dosimetria – IRD, também no Rio de Janeiro, e o Centro Regional de Ciências Nucleares – CRCN-NE, em Recife (1996).

Em 1957, o IEA inaugurou o seu primeiro reator nuclear de pesquisa, primeiro do Brasil e primeiro do hemisfério sul, o IEA-R1, sob a coordenação do Prof. Marcelo Damy de Souza Santos. Um reator de pesquisa tipo piscina de 2 MW, bastante avançado para a época. Em 1960, teve início a operação do reator nuclear de pesquisa IPR-1, tipo TRIGA de 100 KW, no IPR em Belo Horizonte, e, em 1965, a do reator ARGONAUTA, de 500 W, no IEN, no Rio de Janeiro, a partir de um projeto desenvolvido e cedido pelo Laboratório de Argonne (USA) e montado por engenheiros brasileiros e utilizando equipamentos e componentes nacionais.

Esses reatores deram início aos centros de pesquisa de tecnologia nuclear do país, dedicados ao desenvolvimento das competências nacionais nas diversas aplicações multidisciplinares, além do desenvolvimento dos recursos humanos especializados necessários.

Os reatores de pesquisa dos institutos da CNEN encontram-se em operação até hoje, tendo passado por diversos processos de modernização, contribuindo para o desenvolvimento das atividades de P,D&I conduzidas por esses institutos da CNEN em temas de extrema relevância para o País, com resultados reconhecidos mundialmente e publicados em renomadas revistas internacionais.

As aplicações nucleares cobrem diversos segmentos, como o de energia, o de indústria, o de saúde, o ambiental, o de agricultura, o de preservação de bens culturais, entre outros.

Dentre essas aplicações destaca-se o uso de radioisótopos para produção de radiofármacos, utilizados na medicina nuclear para exames de diagnóstico em oncologia, cardiologia, neurologia etc., e para diversos tratamentos de câncer. O IPEN foi o pioneiro na produção de I-131 na América Latina (1960) e em sua aplicação no diagnóstico e tratamento de câncer de tireoide. Ao longo desses 62 anos de atuação nessa área, o IPEN construiu um importante Centro de Radiofarmácia, onde não apenas produz radiofármacos, mas também desenvolve pesquisa e cria inovação para o setor. É o principal fornecedor de radiofármacos do país. Hoje são realizados da ordem de 2 milhões de procedimentos por ano com os diversos radiofármacos fornecidos pelo IPEN, atendendo a mais de 450 clínicas de medicina nuclear, instaladas em todo o território nacional; Cabe ressaltar, também, que a CNEN, foi visionária ao trazer para o Brasil a tecnologia dos aceleradores cíclotrons utilizados para a produção de radiofármacos de meia vida curta, essenciais para os exames de radiodiagnósticos por intermédio dos tomógrafos PET/CT. A partir de 1974, foram construídos no IEN, no IPEN e posteriormente no CDTN e no CRCN os primeiros cíclotrons de energia variável do País, voltados para pesquisas e produção de radioisótopos de meia-vida curta, de larga aplicação na área médica. A CNEN também foi a grande divulgadora e incentivadora dessas aplicações, com apoio da Agência Internacional de Energia Atômica, trazendo os principais especialistas mundiais na área para dar cursos no Sudeste e no Nordeste. Graças a isso foi difundida a técnica do PET/CT, fundamental no diagnóstico e acompanhamento do tratamento do câncer.

Além das aplicações sociais da energia nuclear é importante ressaltar também sua utilização para a geração de energia elétrica por meio de reatores nucleares de potência. Apesar das fontes renováveis aumentarem cada vez mais sua contribuição para a geração elétrica em âmbito mundial, a energia nuclear ainda tem papel predominante como energia de base e que não contribui para o efeito estufa, atendendo a cerca de 10% da matriz elétrica mundial.

Os reatores de potência demandam a disponibilidade de uma cadeia produtiva para sua operação. São volumes significativos de combustível nuclear (urânio), grande quantidade e diversidade de equipamentos de grandes dimensões e, engenharia multidisciplinar de grande porte (civil mecânica, elétrica, instrumentação etc.).

Essa indústria nuclear prosperou em países onde se investiu massivamente na construção de centrais nucleares e da correspondente infraestrutura necessária para sua utilização, sendo atualmente os principais, os EUA (com 92 reatores de potência), a França (56), a China (54), a Rússia (37), a Coreia do Sul (24), o Canadá (19) e o Reino Unido (11).

No Brasil, no final da década de 60, por não haver uma indústria formada, optou-se pela compra por “turnkey” de uma central nuclear (Angra I), por meio de uma empresa estabelecida mundialmente à época (Westinghouse). Já na década de 70, pensando-se num maior número de centrais nucleares no Brasil, o governo da época optou por um acordo nuclear (Brasil-Alemanha) para uma transferência progressiva da tecnologia e parque industrial nuclear para um programa inicial de oito centrais nucleares. Esse investimento teve início com a formação de recursos humanos (Pronuclear) e com a NUCLEBRÁS, que mais tarde deu origem à atual Indústrias Nucleares do Brasil S.A. (INB), à Nuclebrás Equipamentos Pesados S. A.  (NUCLEP), e à ELETRONUCLEAR. Das oito usinas planejadas, uma está em operação (Angra II), e outra em construção (Angra III).

O Brasil, no final da década de 70, demonstrou o desejo de desenvolver e ter capacidade autônoma da tecnologia nuclear, contemplando a propulsão nuclear para submarinos. Essa propulsão é realizada por um reator nuclear de potência como se fosse uma pequena central nuclear embarcada. Foi criado então o PATN, Programa Autônomo de Tecnologia Nuclear. A coordenação principal ficou a cargo da CNEN. A Marinha do Brasil, principal interessada, coordenou as ações para obtenção da propulsão nuclear naval. Foram os institutos de tecnologia nuclear da CNEN, principalmente o IPEN, que formaram a base técnica para esse desenvolvimento autônomo. Essa autonomia não é empresarial, mas sim de caráter tecnológico, estratégico e a nível piloto. O sucesso desse programa foi alcançado com o desenvolvimento nacional de todas as etapas da tecnologia do ciclo do combustível nuclear, entre elas o   enriquecimento de urânio por ultracentrifugação, o processo de fabricação de combustíveis nucleares, bem como o projeto e construção de protótipos experimentais de sistemas do reator de propulsão naval (atual LABGENE). Também foi construído o primeiro reator de pesquisa totalmente brasileiro, o reator IPEN/MB-01, instalado no IPEN em 1988, para testes de física do núcleo de reatores.

Hoje, as centrífugas desenvolvidas no projeto da Marinha do Brasil pelo Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo – CTMSP são utilizadas pela INB (Indústrias Nucleares do Brasil) para produzir os combustíveis das centrais nucleares de Angra dos Reis. O enriquecimento de urânio até o teor de 20% em U-235 é realizado no Laboratório de Enriquecimento Isotópico (LEI) de ARAMAR, sendo uma das poucas instalações mundiais com essa característica, produzindo UF6 enriquecido para reatores de potência de pequeno porte (navais), para reatores de pesquisa, e para a futura geração de reatores pesquisados mundialmente (SMR – Small Modular Reactors). Isso é de extrema relevância em qualquer programa nuclear em âmbito mundial, e o Brasil tem essa tecnologia desenvolvida e instalada no País, autonomamente.

Em 2007, o Ministério da Ciência e Tecnologia (atual MCTI), lançou o PACTI – 2007-2010 – Plano de Ação em Ciência, Tecnologia e Inovação (PACTI) para o Desenvolvimento Nacional. Este Plano contemplava o Programa Nuclear Brasileiro (PNB), sendo a principal fonte de financiamento do PACTI os recursos oriundos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Os seguintes pontos do setor nuclear estavam realçados no PACTI: consolidação do arcabouço legal da área nuclear; ampliação do ciclo do combustível nuclear na INB; consolidação da planta piloto de produção de UF6 (conversão) no CTMSP em ARAMAR; capacitação e adequação da NUCLEP para fabricação de componentes das novas usinas nucleares; implementação de uma política brasileira de gerenciamento de rejeitos radioativos; projeto e instalação de um reator nuclear de pesquisa multipropósito, e realização de ações de P&D&I voltadas para a capacitação nacional

Em 2008, a CNEN iniciou o projeto do empreendimento Reator Multipropósito Brasileiro (RMB), estabelecido como meta do PACTI/MCT 2007-2010, e alinhado às políticas estratégicas referentes ao Programa Nuclear Brasileiro (PNB). O Empreendimento RMB foi concebido para disponibilizar ao país um reator nuclear de pesquisa multipropósito e toda uma infraestrutura de laboratórios e instalações para atender às necessidades relativas à produção crescente de radioisótopos para aplicação médica, além de propiciar o suporte ao desenvolvimento tecnológico nuclear autônomo nas áreas de energia elétrica e de propulsão naval. O RMB será um importante ator no desenvolvimento científico e tecnológico nacional contribuindo fortemente para a inovação e para a formação de recursos humanos especializados para o setor. Os laboratórios do RMB terão caráter de laboratórios nacionais, disponíveis para a comunidade científica do País, e particularmente, em relação à pesquisa básica e científica em materiais, deverá ser um laboratório complementar ao Laboratório Nacional de Luz Sincrotron de Campinas, uma vez que permitirá, com técnicas e equipamentos utilizando feixes de nêutrons, complementar estudos realizados com a luz sincrotron.

O RMB está sendo instalado em uma área de mais de 2 milhões de metros quadrados no município de Iperó (SP), área essa disponibilizada pela Marinha acrescida de 0,84 milhões de m2 desapropriados pelo Governo do Estado de São Paulo), o que possibilitará também que o RMB se torne um grande centro de pesquisa tecnológica, a exemplo do ocorrido com os outros reatores e centros de pesquisas nucleares nacionais. Sua instalação em terreno vizinho ao Centro Experimental ARAMAR da Marinha do Brasil, transformará a região no maior polo de desenvolvimento de tecnologia nuclear do país. Pelas suas características, o RMB é um projeto estruturante e de arraste tecnológico para o setor nuclear e de importância fundamental para viabilizar políticas públicas para o setor. ( Website do RMB – clique na figura do RMB do site da CNEN https://www.gov.br/cnen/pt-br)

No que se refere aos demais projetos e atividades executados no âmbito dos institutos de pesquisa da CNEN, podemos destacar o projeto do Centro de Tecnologia Nuclear e Ambiental (CENTENA), que abrigará o repositório nacional para rejeitos radioativos de baixo e médio níveis de atividade e que vem sendo desenvolvido pelos pesquisadores do Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear, o CDTN, localizado em Belo Horizonte.

Também no que se refere às aplicações ambientais são muitas as realizações da CNEN junto ao setor industrial, podendo destacar-se a utilização de radiotraçadores para o monitoramento do deslocamento e deposição de efluentes, assim como para estudos da dinâmica de lençóis de águas subterrâneas, visando sua utilização de forma sustentável.

Outra atividade muito importante desenvolvida atualmente na área ambiental diz respeito ao monitoramento das águas costeiras da região da América Latina, visando o rastreamento da presença de microplásticos, que vem se agravando tanto na costa do Atlântico quanto na do Pacífico. Nesta aplicação são colhidas amostras ambientais na zona costeira de diversos países e feita a avaliação da contaminação por intermédio de técnicas isotópicas, o que possibilita dimensionar a quantidade, a composição, a fonte geradora e a deposição dessas substâncias para, a partir dessas informações, subsidiar as decisões governamentais quanto às ações mitigadoras necessárias.

Na área da agricultura, as mesmas técnicas envolvendo radiotraçadores são aplicadas para avaliar a dinâmica de distribuição e absorção de nutrientes em diversos tipos de cultivo, além da utilização da técnica de indução mutagênica para acelerar o processo de desenvolvimento de espécies resistentes às novas situações climáticas e o combate a pragas endêmicas.

Também na área industrial são inúmeras as aplicações da energia nuclear, destacando-se os processos de tratamento de materiais por irradiação, como é o caso da retificação da borracha sintética utilizada na fabricação de pneus, além da esterilização de produtos cirúrgicos e de condimentos utilizados na indústria alimentícia.

Todas essas aplicações são fruto das atividades de P,D&I conduzidas pela CNEN, por intermédio de seus institutos de pesquisa, com resultados diretamente entregues ao setor produtivo.

Enfim, são muitas as aplicações sociais da energia nuclear e o Brasil possui experiência, instalações, profissionais e instituições habilitadas a atuar em todas elas, com os institutos vinculados à CNEN detendo  o conhecimento tecnológico necessário para que o País possa não só acompanhar, mas também participar do processo de desenvolvimento e ampliação desse conhecimento, garantindo as condições para que a população brasileira tenha acesso aos avanços tecnológicos e aos benefícios que são proporcionados com o uso da tecnologia nuclear.

Fonte: IPEN