A implementação da Tarifa Zero, em algumas cidades brasileiras, vem possibilitando um amplo debate sobre essa importante política pública, nos seus mais variados aspectos. Pelo alcance e consequências de um projeto dessa natureza, a sua adoção passa, obrigatoriamente, por avaliações políticas, técnicas, operacionais, urbanísticas, econômicas e, principalmente, sociais.
Embora a Tarifa Zero tenha sido adotada em Conchas, no interior do Estado de São Paulo, em 1992, foi no período pós-pandemia que essa prática cresceu, de forma acelerada. Hoje, 140 cidades brasileiras estão subsidiando seus sistemas de transportes com a utilização da Tarifa Zero, de maneira plena ou parcial, ou seja, em alguns dias da semana, em algumas áreas da cidade ou para segmentos específicos da população.
A prática da Tarifa Zero é uma medida que visa eliminar a cobrança de tarifas para os usuários, garantindo o pagamento do custo da produção dos serviços por outras fontes – geralmente subsídios públicos – possibilitando o acesso universal a esse serviço, essencial e estratégico, pelas pessoas de mais baixa renda que, na essência, é o segmento populacional que mais precisa e mais depende do transporte público. Vale dizer, ainda, que essa política beneficia diretamente os indivíduos que, antes, não tinham condições de pagar pelos seus deslocamentos urbanos. Essa é, sem dúvidas, uma política pública que garante a inclusão social de uma parte significativa da população brasileira.
Dentre os argumentos mais relevantes para a utilização da Tarifa Zero estão a garantia do direito social ao transporte, nos termos do artigo 6º da Constituição Federal; o direito à cidade, conforme previsto no Estatuto da Cidade (Lei Federal Nº 10.257, de 10/07/2001), e o incentivo ao uso do transporte público coletivo, visando diminuir o interesse e o crescimento do transporte privado individual – carros e motos – que congestionam o trânsito, dificultam o uso mais democrático do espaço urbano, causam maior poluição ambiental, comprometem a sustentabilidade urbana e desorganizam o funcionamento das atividades socioeconômicas nas cidades .
Mário Eduardo Garcia, renomado engenheiro que tem participado de importantes projetos na área dos transportes públicos, publicou no site da Associação Nacional dos Transportes Públicos – ANTP, em 01/06/2024, um artigo intitulado “Tarifa Zero: tentando ir um pouco além do sonho”, onde destaca “Finalizando, nada do que se disse acima contesta o DNA de fundo social inerente à tarifa zero. É óbvia e válida a sua motivação, até como um ato de justiça, para abrir portas e desvelar os horizontes mais propícios da cidade aos que mais precisam. Entretanto, ela deve ser pensada e proposta no seu todo, como política pública integrada, e nunca enunciada apenas como frase salvacionista, gerando falsas expectativas. Cada um dos impactos, que não se esgotam com o exposto neste texto, deve ser cuidadosamente sopesado e tratado, para que a promessa possa se materializar, sem provocar efeitos opostos ao seu objetivo.”
No artigo publicado pelo eminente engenheiro é possível identificar que o modelo tarifário usado em uma determinada cidade pode interferir e até definir o modelo de ocupação urbana, tornando a cidade mais adensada ou mais espalhada, em função das distâncias a serem percorridas, para conectar as regiões onde se situam as moradias com as áreas da cidade onde estão os empregos – formais e informais –, com impacto direto no custo das respectivas viagens. Mas, com a Tarifa Zero, a correlação entre os modelos tarifário e de ocupação urbana se modifica drasticamente, por conta das economias decorrentes do não pagamento da tarifa pública.
É possível verificar que nas cidades que adotaram essa política pública, houve um significativo aumento do movimento dos centros comerciais, normalmente localizados na região central das cidades, bem como das viagens de final de semana, com a finalidade de proporcionar lazer às famílias de menor renda, que residem nas periferias dos municípios. Esse efeito pode promover a integração entre diferentes classes sociais e uma maior coesão social, diminuindo desigualdades e proporcionando um direito mais igualitário à cidade.
Deve-se considerar, ainda que, do ponto de vista social, a Tarifa Zero pode ter impactos extremamente importantes nas camadas mais vulneráveis da população; pois, além de ampliar o acesso ao transporte, beneficia quem, por muitas vezes, deixa de acessar serviços básicos, como saúde e educação, bem como oportunidade de emprego, devido ao custo das passagens. Com a gratuidade, trabalhadores de baixa renda e desempregados podem, também, se deslocar com mais facilidade, em busca de tratamentos médicos e de oportunidades de qualificação e de colocação.
No artigo publicado na rede Linkedin e no site do Sindicato das Empresas de Ônibus da Cidade do Rio de Janeiro – Rio Ônibus, em 13/01/25, sob o título “Transporte público é como água: essencial, mas ninguém carrega o custo sozinho”, o conhecido empresário do setor, Jacob Barata Filho, afirma que “na Tarifa Zero, o financiamento é compartilhado por toda a sociedade, via impostos, iniciativas empresariais ou fundos públicos, eliminando esse custo direto para os usuários. Parece ousado? Sim, mas a adoção da Tarifa Zero desencadeia um processo socioeconômico virtuoso cujo resultado é comprovado em todas as cidades onde é adotado o programa…. O financiamento total do transporte público não é apenas uma política, mas um investimento em pessoas, cidades e futuro. É a chance de mudar a dinâmica de exclusão que afeta milhões e caminhar rumo a um país mais justo. Financiar o transporte público é escolher ir longe.”
Os benefícios sociais da Tarifa Zero são muito significativos e apresentam um grande desafio, da concepção do projeto à sua efetiva implementação. Mas, o financiamento do sistema, incluindo a cobertura dos custos operacionais e dos investimentos em frota e infraestrutura, precisa ser, cuidadosamente, planejado, para responder ao inevitável aumento da demanda e garantir a qualidade e a frequência necessária dos ônibus, evitando superlotação e a degradação dos serviços, pelo desequilíbrio entre o número de passageiros e a oferta de lugares. Normalmente, o custeio dos serviços é realizado por meio de impostos progressivos, o que gera um debate sobre justiça fiscal e a participação equitativa de toda a sociedade.
Assim, a adoção da Tarifa Zero apresenta potencial para promover justiça social, inclusão e sustentabilidade; mas, para ser efetivada como uma verdadeira política pública, a tarifa zero precisa ser bem planejada, ter fontes permanentes de recursos e um modelo de financiamento equitativo e sustentável para o curto, médio e longo prazos.
É importante destacar que todo o debate que vem acontecendo sobre a adoção da Tarifa Zero ou de tarifas mais módicas, por meio de subsídios aos passageiros, deveria ser acompanhado de uma discussão mais ampla, sobre a garantia de um transporte público de melhor qualidade, tarifas mais justas e serviços cada vez mais universais, com pleno acesso para todos os segmentos da população. A população precisa escolher o transporte público coletivo não apenas pela sua universalidade e gratuidade na prestação dos serviços; mas, pela sua qualidade e pelo atendimento às suas expectativas e suas necessidades de deslocamento.
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(*) Francisco Christovam é Diretor Executivo (CEO) da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU, Vice-Presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo – FETPESP e da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, bem como membro do Conselho Diretor da Confederação Nacional do Transporte – CNT e membro do Conselho Deliberativo do Instituto de Engenharia