Estadão – SP vai permitir mais prédios perto do Tietê e outros rios? Saiba como e veja mapa das áreas

Regras para construir nessa áreas estão na ‘minirrevisão’ do zoneamento, que será votada na terça, mas têm dividido opiniões; relator na Câmara diz que liberações terão de seguir avaliações técnicas

Antes mesmo de a Câmara de São Paulo anunciar a “minirrevisão” da Lei de Zoneamento, já havia um debate sobre como as normas iriam incorporar a nova Carta Geotécnica de Aptidão à Urbanização, apresentada em maio. A resposta para isso deve vir nesta terça-feira, 2, com a votação final do “pacotão” de projetos que alteram as principais leis urbanísticas, como o Plano Diretor e a Operação Urbana Faria Lima.

A carta geotécnica indica as regiões mais “frágeis” e suscetíveis a afundamento, inundação, deslizamento e outros problemas. Não são necessariamente áreas de risco, mas propensas a esses tipos de evento. Grande parte dos locais mais vulneráveis está nas várzeas dos principais rios, como Tietê, Pinheiros e Tamanduateí, e em eixos de verticalização, que são locais com incentivos à construção de prédios altos.

Desenvolvida pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT) em parceria com a Prefeitura, a carta aponta que mais de 23% da área da cidade está em uma classificação geotécnica de baixa ou nenhuma aptidão à urbanização. Isso inclui quadras de bairros diversos, a exemplo de Vila Leopoldina, Alto de Pinheiros, Tatuapé, Barra Funda, Pirituba, Itaim Bibi, Butantã e Santo Amaro. Um mapa interativo do Estadão mostra as localizações, e está disponível mais abaixo.

A compatibilização com a nova carta geotécnica foi um dos motivos apresentados pela Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente da Câmara para propor a “minirrevisão” do zoneamento. No projeto de lei, está a indicação de quais áreas somente poderão receber novos prédios com pavimentos subterrâneos mediante parecer técnico, dentre outros aspectos, mas as exigência foram consideradas insuficientes por uma parte dos especialistas.

As propostas dos vereadores não cessaram todos os questionamentos de especialistas, advogados e sociedade civil em geral. Essas questões envolvem até mesmo a discussão a respeito da cidade continuar crescendo nos locais mais propensos a problemas, como no entorno dos rios, onde historicamente se desenvolveu.

Também são defendidas mais restrições a outras áreas sujeitas a afundamentos e não indicadas no projeto de lei. Segundo a carta geotécnica, 12 das 20 unidades geotécnicas da cidade têm locais com suscetibilidade a recalque, mas apenas cinco perímetros têm mais restrições no projeto. Por outro lado, cerca de 90% do território mais apto à urbanização (como a Avenida Paulista) está ocupado e com menor potencial de transformação.

O tema foi um dos principais das audiências públicas da “minirrevisão”. Relator da “minirrevisão” e das revisões da legislação urbanística do ano passado, o vereador Rodrigo Goulart (PSD) destaca que o desenvolvimento da cidade no entorno desses eixos foi um entendimento do Plano Diretor de 2014, quando a vulnerabilidade já era conhecida, com a carta geotécnica de 1992.

“Não é que se está liberando tudo. Vai poder fazer desde que apresentada a (solução) técnica e (for) aprovada. Se o (Departamento de) Licenciamento dizer que não vai dar, não vai dar”, defende. Além disso, o vereador ressaltou que a nova Lei de Zoneamento foi a primeira a proibir o rebaixamento de lençol freático nessas áreas e afirma que a “minirrevisão” é mais exigente do que a legislação anterior.

Além disso, o vereador salientou outras inclusões nessa lei e na nova do Plano Diretor (ambas de sua relatoria) voltadas ao meio ambiente, como de drenagem, aumento da área permeável, inclusão de novos parques, dentre outras. Por outro lado, algumas dessas medidas também tiveram críticas, como o aval para habitações de baixa renda em algumas das Zonas Especiais de Proteção Ambiental (Zepam), sob a justificativa de que já estavam urbanizadas.

O que está na carta geotécnica?

Em parte dos entornos de várzea, a carta aponta que há risco de recalque (afundamento) se ocorrer “sobrecarga e adensamento de solos compressíveis/solos moles em obras e aterros sobrepostos e/ou rebaixamento do nível d’água subterrânea”.

Por isso, recomenda que áreas mais vulneráveis ainda não ocupadas permaneçam esvaziadas. Já as demais poderiam receber novas construções mediante estudos detalhados e projetos adaptados às condições locais.

Segundo a carta, esse tipo de solo é formado de sedimentos transportados por cursos hídricos, com alta porcentagem de material orgânico e alto teor de umidade, considerado de resistência pouco satisfatória para suportar cargas. No geral, abrange áreas de várzea.

Conforme a publicação, é preciso considerar a “restrição, conservação ou mesmo proteção especial em áreas de baixa aptidão e/ou inaptas”. Em geral, segundo a carta, essas áreas de entorno de várzea também têm propensão a inundação e alagamentos periódicos, enxurradas, erosão fluvial, deslizamentos, poluição e contaminação de solos e águas subterrâneas, dentre outros.

Como nas demais unidades geotécnicas, a suscetibilidade varia dentro do território. Isto é, trata-se de uma classificação macro, mas a identificação exata dos lugares mais vulneráveis deve ocorrer em menor escala, com avaliação mais local.

O que a ‘minirrevisão’ do zoneamento diz sobre esse tema?

Na “minirrevisão” do zoneamento, um dos artigos propostos determina a adoção de “métodos de engenharia que impeçam o rebaixamento do nível do lençol d’água” em novas construções em terrenos na Unidade Geotécnica I (U-I). Esse perímetro abarca grande parte do entorno dos principais rios.

A exigência ainda abrange os cinco perímetros principais com histórico de recalque na cidade — em Moema, na Chácara Santo Antônio, no Paraíso, no Itaim Bibi e na Água Branca. Há, também, a possibilidade de inclusão de novos, mediante indicação da Comissão de Edificações e Uso do Solo (Ceuso), que reúne representantes da Prefeitura e de entidades especializadas.

Dessa forma, o projeto indica que intervenções no subsolo dessas áreas poderiam ocorrer apenas acima e abaixo do lençol freático. Esse tipo de obra geralmente envolve garagens subterrâneas, áreas de serviço e outras instalações, por vezes gerando o descarte de água no entorno.

Nesses casos, a “minirrevisão” exige que ao menos 15% (terrenos de até 500 m²) ou 20% (acima de 500 m²) da área dos lotes seja permeável. Além disso, requer apresentação de parecer assinado por profissional habilitado (a ser avaliado pela Prefeitura) e contratação de seguro de risco de engenharia ou obras civis.

Além disso, o projeto aponta que terrenos em área de risco poderão ser classificados como “eixos de verticalização” (com incentivos a prédios altos perto de metrô, trem e corredor de ônibus) “desde que apresentado parecer técnico com proposta de medidas de mitigação ou eliminação da área de risco”. Também é exigida uma declaração assinada pelo responsável técnico.

Entre as pessoas que abordaram o tema em audiência pública, está a geóloga Patrícia Marra Sepe, co-coordenadora da nova carta geotécnica. Ela defendeu incluir mais áreas sujeitas a afundamento entre aquelas que vetam o rebaixamento do lençol freático.

“Incorre em um erro técnico bastante grave, porque esse decreto sinaliza áreas onde já ocorreram. Na verdade, a gente tem problemas de recalque em toda a cidade, mas, principalmente, nas unidades geotécnicas I e II (nas várzeas)”, afirmou na audiência pública.

Outro ponto também abordado em audiência pública envolve os locais que não podem ser eixo de verticalização (com incentivos a prédios altos). Isso porque a atual Lei de Zoneamento veta essa classificação em “áreas de risco hidrológico ou geológico ou áreas sujeitas a recalque e problemas geotécnicos, conforme mapeamento oficial do Município”.

O trecho tem motivado dúvidas no setor, incluindo escritórios especializados em direito urbanístico que atendem ao mercado imobiliário. Para tentar sanar a questão, a Prefeitura publicou decreto em maio sobre o que seriam essas exceções de eixo (locais mapeados pela Defesa Civil e outros mais).

Por outro lado, também abriu a possibilidade de que sejam mais verticalizados mediante a apresentação de parecer com propostas de medidas de mitigação, o que tem dividido opiniões.

Em nota, a Prefeitura aponta que o “planejamento urbano mais seguro é preocupação da atual gestão municipal”. Também responde que o decreto que instituiu a carta assegura sua utilização em processos de licenciamento, como para análise de novos loteamentos, especialmente em áreas com vulnerabilidades de solo e de proteção ambiental.

O que dizem os especialistas?

O Estadão procurou especialistas em geologia, engenharia e arquitetura e urbanismo sobre o tema. As opiniões são divergentes, mas destacam a importância de discussão em meio às mudanças climáticas, com eventos extremos mais frequentes e intensos.

Levantamentos da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento têm apontado, por exemplo, o aumento de áreas com risco geológico-geotécnico em diferentes partes da cidade.

Professora no Departamento de Construção Civil do Instituto Federal São Paulo (IFSP), a arquiteta e urbanista Maria Cecilia Lucchese avalia que a “minirrevisão” precisa de mais tempo. Não só para avaliar como incorporar a carta geotécnica, mas também os cadernos de drenagem, que indicam áreas propensas e com histórico de alagamento, inundação e afins.

“Tem condições de continuar adensando determinados eixos (áreas com incentivos à construção de prédios altos, no entorno de metrô, corredor de ônibus e trem)? Não seria o caso de ter mais áreas permeáveis para reter e infiltrar mais água no solo? O momento de discutir é agora, porque está todo mundo assustado com o que aconteceu no Rio Grande do Sul”, diz.

Em Porto Alegre, a elevação do nível do Lago Guaíba e as falhas no sistema de contenção de cheias fez com que bairros inteiros ficassem alagados por dias após tempestade recorde no Estado.

“As zonas eixo passam por áreas favoráveis e menos favoráveis ao adensamento. Não posso ter essa zona pensada do mesmo jeito para a cidade como um todo”, completa Maria Cecilia, também pós-doutoranda no Instituto de Estudos Avançados da USP.

Cocoordenador da carta geotécnica e pesquisador do IPT, o geólogo Omar Yazbek Bitar explica que a carta é voltada especialmente a prevenir a criação de novas áreas de risco. “Não dá para continuar se comportando como se não tivesse as previsões (das mudanças climáticas), que estão se confirmando. Com esses eventos cada vez mais intensos e frequentes, vamos continuar construindo áreas com alta suscetibilidade à inundação? Até é possível: tudo vai depender do tipo de ocupação.”

Por isso, avalia que a carta poderia orientar o poder público a direcionar esforços para onde a urbanização seja mais desejável. “Se tem alta suscetibilidade, vamos preservar essas áreas. Preservadas, têm função ambiental, prestam serviço ecossistêmico para a sociedade”, diz. “Se for fazer uma coisa, há uma série de cuidados a serem tomados.”

O geólogo pondera, contudo, que a carta “dá a primeira ideia”, mas que os possíveis problemas precisam ser aferidos em escala mais local. “Tudo tem de ser olhado no contexto geológico, geotécnico, hidrológico.”

Já Roberto Kochen, assessor especial do Instituto de Engenharia e professor da Escola Politécnica da USP, explica que há soluções técnicas para salvaguardar novas construções em áreas com suscetibilidade a eventos. Como exemplo, cita os Shoppings Morumbi e VillaLobos, construídos com uma cota de inundação mais alta do que o entorno, o que diminui impactos de alagamentos.

“É importante o zoneamento considerar o macro, e o empreendimento tem que analisar micro”, afirma. “Normalmente, a área de engenharia define o traçado, faz sondagens e amostras de solo. São projetadas estruturas para aquela região”, completa. Para ele, as propostas da “minirrevisão” são o que chama de “avanço” para as exigências atuais.

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Fonte: Estadão