Na esteira de experiências em cidades como Rio de Janeiro, Santos e Medellín, na Colômbia, a Prefeitura de São Paulo resgatou a proposta de um Veículo Leve Sobre Trilhos (VLT). O projeto inclui duas linhas no centro e está em fase de desenvolvimento, com Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) aberto até 8 de março, voltado a receber estudos complementares de interessados. O custo estimado é de R$ 3,5 bilhões, com implementação e operação por Parceria Público Privada (PPP) de até 35 anos, em modelo similar ao da concessão da Linha 6-Laranja de metrô.
O nome preliminar é Bonde São Paulo, com a proposta de duas linhas circulares (Vermelha e Azul) por trechos dos distritos República, Sé e Bom Retiro — passando no entorno de pontos conhecidos, como Vale do Anhangabaú, Jardim da Luz e Largo do Paissandu, e partes das principais vias da região, como Avenida São João, Rua José Paulino, Avenida Prestes Maia e as proximidades da Rua Santa Ifigênia. A estimativa é atender cerca de 100 mil passageiros por dia.
Segundo a Prefeitura, o projeto está em desenvolvimento há cerca de um ano e terá novas etapas de estudo ao longo de 2024, a fim de calibrar fontes de receita e outros aspectos, como a adoção de uma opção elétrica ou a hidrogênio.
Não há prazo oficial para a apresentação da modelagem definitiva e a publicação de licitação. O chamamento público do PMI foi assinado pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) em agenda pública comemorativa do aniversário de São Paulo.
A gestão municipal argumenta que esse modo de transporte poderia reduzir os acidentes com ônibus — cujos trajetos passariam por alterações —, diminuir a emissão de poluição sonora e atmosférica, interligar terminais de ônibus e estações de trem e metrô do perímetro, aumentar a sensação de segurança, atrair turistas e embelezar a região central. Parte dos especialistas em urbanismo e mobilidade concorda que pode gerar esse tipo de impacto positivo.
O VLT do centro não é, contudo, unanimidade e recebe críticas diversas. Entre elas, estão o custo bilionário, que poderia ir para medidas consideradas mais urgentes e necessárias; a localização central, enquanto diversos bairros têm poucas opções de transporte; e indefinição sobre a execução de fato, ainda mais em meio a um ano de eleição municipal, em que o prefeito é pré-candidato à reeleição.
O nome do projeto faz referência aos antigos bondinhos elétricos (que operaram até 1968 na capital). Como os bondes, esses veículos trafegam em um trilho ao lado das faixas para automóveis e afins. Externamente, lembram vagões de metrô, com fluxo mais silencioso e sem tanta vibração.
Na Prefeitura, tem-se destacado que a implementação poderia impulsionar transformações mais profundas no centro, em conjunto com incentivos estabelecidos no Plano de Intervenção Urbana (PIU) Setor Central e outras medidas. O grupo de trabalho que desenvolve a proposta é chefiado pelo secretário adjunto de Governo, Clodoaldo Pelissioni, secretário estadual de Transportes Metropolitanos em gestões passadas.
Ao Estadão, o secretário ressaltou os diversos estudos em desenvolvimento para o projeto, parte feitos internamente, parte em colaboração com a iniciativa privada, por meio de reuniões com agentes do setor ferroviário, fabricantes de material rodante e entidades variadas. Um convênio com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) também é esperado, especialmente para desenhar as possíveis receitas para garantir o funcionamento do sistema.
Pelissioni evita dar uma data para a licitação, mas é pouco provável que seja este ano, voltado a delinear o projeto e o modelo de concessão. “Precisamos de tempo para investir em um bom projeto”, disse. “O VLT é um projeto de valorização grande do centro, de valorização imobiliária. É um ‘ganha-ganha’ tremendo, não em detrimento de outras políticas. Essas coisas têm de andar em paralelo, de maneira conjunta e integrada.”
A gestão Nunes pleiteia recursos federais para a obra, via Novo PAC (Plano de Aceleração do Crescimento, retomado pelo governo Lula). Após a Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP 28), em dezembro, chegou a divulgar que o ministro Jader Filho sinalizou a liberação de R$ 1,4 bilhão. Por enquanto, oficialmente, o Ministério das Cidades afirma que a proposta segue em análise, sem definição “sobre o aporte de recursos pelo governo federal”, conforme nota enviada ao Estadão.
O projeto preliminar considerou outras duas propostas. Uma delas foi a anunciada em 2017, na gestão João Doria (então no PSDB), de duas linhas circulares no centro, doada à Prefeitura pelo setor imobiliário (Secovi-SP) e de autoria do escritório do urbanista Jaime Lerner.
Essa tinha percurso menos amplo, que não chegava ao Bom Retiro, assim como o transporte sugerido era um Veículo Leve Sobre Pneus (VLP), não trilhos. Além disso, o conteúdo de uma Manifestação de Interesse Privado (MIP) apresentada pela Alstom (fabricante dos VLTs do Rio) há cerca de cinco anos também foi avaliado.
O levantamento mais recente da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) sobre empreendimentos de mobilidade aponta 21 projetos de VLT em desenvolvimento no País. Divulgado em agosto, o material indicava dois sistemas do tipo em obras e quatro em operação.
Na capital paulista, o VLT chegou a ser anunciado para o transporte de passageiros entre o metrô e o Aeroporto de Congonhas (e também foi discutido para o de Guarulhos e para a zona leste) após acordo entre as três esferas de governo. Posteriormente, optou-se pelo monotrilho.
Na Baixada Santista, o VLT está próximo de completar uma década. Hoje, liga São Vicente até o Porto de Santos, mas está em obras de expansão de um novo trecho santista. Além disso, o governo do Estado estuda a ampliação até Praia Grande.
O que mais se sabe sobre o projeto do VLT do centro paulistano?
O PMI receberá os estudos das consultorias autorizadas em três meses (prorrogáveis), com subsídios operacionais, econômico-financeiros, jurídicos e afins à proposta. Essa etapa terá investimento de R$ 3,6 milhões, com a exigência de que sigam diretrizes e características do projeto básico, como integração ao sistema do Bilhete Único e veto a uma tarifa superior à da passagem de ônibus. Estima-se que seriam necessários quatro anos para a implantação.
O projeto preliminar calcula que o tempo do trajeto completo de cada linha dure cerca de 45 minutos, com velocidade média de 18 km/h e guiado por um condutor. É esperado que seja um anel de interligação por diferentes partes do centro e com outras formas de locomoção, como metrô, trem e ônibus. Isto é, espera-se que o passageiro desembarque nos terminais e estações e, na sequência, faça o trecho mais curto de VLT.
A capacidade seria de receber 447 passageiros para cada viagem, realizada das 6h à 0h, com nove veículos em operação. Cada linha teria 13 estações cada, com a vermelha voltada especialmente à região da Santa Ifigênia e Bom Retiro, enquanto a azul no entorno da República e da Sé (com operação nos dois sentidos).
A Linha 1-Azul tem trajeto preliminar de 6,45 km, enquanto a Linha 2-Vermelha teria 6,26 km. A conexão prevista entre as duas linhas seria na Avenida São João. Com a implantação, dezenas de pontos e trajetos de ônibus precisariam ser transferidos, com possível redução na circulação no miolo das linhas de VLT.
Além disso, a proposta envolve um centro integrado de operações na Rua Prates, no Bom Retiro. No local, espera-se implementar um espaço multiuso de 27 mil m², com comércio voltado à rua, equipamentos públicos e até 2 mil apartamentos. Para a gestão municipal, a verticalização desse espaço pode ser importante fonte de renda para viabilizar o projeto.
O que dizem especialistas sobre um VLT no centro de São Paulo?
O Estadão procurou especialistas em mobilidade, gestão pública e urbanismo para discutir a proposta.
Vice-presidente de Atividades Técnicas do Instituto de Engenharia, Ivan Whately define o VLT como um “transporte amigável”, pela menor velocidade de tráfego, maior integração com o entorno e baixo impacto ambiental. Ele cita exemplos mundiais, como de Paris, Melbourne, Sydney e até do Rio — que considera um sucesso, implantado na antiga zona portuária por meio de uma operação urbana.
Para o especialista, o VLT ainda não é tão difundido no País, em parte, porque continua-se a investir nos mesmos modelos há décadas. “Algumas cabeças não conseguem ver além das rodas de pneu e motor a diesel jogando fumaça”, diz.
Opinião distinta tem o pesquisador, urbanista e integrante do conselho gestor do PIU Setor Central Guido Otero. Ele considera que o aporte do projeto deveria ser investido em outras iniciativas, especialmente de políticas sociais e habitacionais para a população que vive em condições precárias, como em cortiços e nas ruas.
“Não é uma prioridade para o centro, o lugar que mais tem mobilidade de São Paulo, com estações de metrô, terminais, ruas de pedestres. Não é uma demanda da população que mora e trabalha no centro, é mais voltado para turismo”, critica.
Também questiona o motivo de a Prefeitura ter retomado o projeto publicamente a menos de um ano das eleições, ainda mais ao considerar o histórico de anúncios para a região feitos por diversas gestões e que não foram executados. “Ficam especulando com projetos para o centro, dos quais a maioria não sai do papel”, comenta. “Não ataca as demandas do centro, de pessoas que não têm onde morar. A gente vê um monte de pessoas debaixo de viadutos, e isso não se resolve com VLT.”
Um fator citado nessa discussão é a proximidade das eleições. Especializado em gestão e política pública, o economista André Marques avalia que um VLT envolve estudos complexos, com um nível de incerteza importante e implementação a médio ou até longo prazo. Portanto, não impactaria tanto no pleito quanto uma obra mais imediata, por exemplo.
“Projeto desse porte, para ter algum anúncio durante o mandato, precisa começar cedo, no dia -1 do mandato”, argumenta. Ele também cita que diversas mudanças são comuns ao longo dos estudos, inclusive com adaptações para ampliar ou reduzir o escopo. Na prática, por vezes, a execução fica distinta do que foi ventilado inicialmente.
Além disso, o especialista comenta que diversas capitais têm discutido mudanças nos centros. Nesse contexto, têm adotado ou estudado mudanças para reorganizar o trânsito e torná-lo menos nocivo para o entorno, por exemplo, o que inclui o VLT, outros meios e até restrições de tráfego. “Não é uma característica única de São Paulo, o centro se esvaziando ao longo do tempo. É um desafio bastante comum de grandes cidades do Brasil e do mundo.”
Doutor em Engenharia com foco em Mobilidade Urbana e consultor, Luiz Vicente Figueira de Mello Filho avalia que o VLT tem a vantagem de ser um elétrico que não exige fiação, diferentemente dos trólebus, assim como de retomar um histórico positivo dos bondes. “São Paulo teve mais de 700 km de trilho de bonde. Tudo o que possa resgatar é fundamental.”
Destaca, contudo, que o projeto precisa ser bem delineado, para não repetir os erros do “Fura Fila”, por exemplo. O hoje chamado Expresso Tiradentes teve diversos atrasos e problemas, inclusive com a empresa contratada para a obra.