A carne no futuro poderá ser criada desde as primeiras células e ser “impressa”, para ter uma textura parecida com a da convencional, ou ganhar formatos muito diferentes do que conhecemos: quem sabe um dia você vai beber um “suco” de bife…
A chamada carne de laboratório (ou carne cultivada) é um produto no qual o agronegócio mundial já investiu US$ 1,9 bilhão desde 2016, segundo estimativa da ONG The Good Food Institute (GFI), que apoia o desenvolvimento do mercado de proteínas alternativas.
🧪🔬O Brasil é um dos países que estão na vanguarda mundial da pesquisa e produção, mas não vai dar para comer essa carne no próximo churrasco: a previsão é de que ela comece a ser vendida aqui, bem aos poucos, só a partir do ano que vem.
🍖 É uma estimativa parecida com a de outros grandes mercados, como Europa e Estados Unidos. Atualmente, só Singapura comercializa o produto, em quantidade bem pequena. A carne também pode ser provada em um restaurante em Israel.
🆘 Quem aposta tanto nessa tecnologia, como a gigante JBS, afirma que é uma questão de sobrevivência. A expectativa da indústria é de uma produção mais sustentável e com menos sofrimento animal.
🐄🐄🐄🐄🐄 Mas ninguém ainda conseguiu fazê-la em larga escala e de forma barata. E existem controvérsias sobre a promessa de sustentabilidade.
O g1 conversou com pesquisadores, especialistas em agropecuária, engenharia de alimentos e nutrição, além da JBS, uma das principais investidoras do produto no Brasil, para entender pontos básicos e as visões diferentes sobre essa tecnologia:
- QUANTO CUSTA: segundo os entrevistados, ainda não dá para estimar o custo de produção e de venda do produto; isso porque ele não existe em larga escala.
- É IGUAL À CARNE COMUM? nenhum dos entrevistados diz ter provado até agora. A engenheira de alimentos Tatiana Nery afirma que o sabor deverá ser parecido com o das carnes convencionais, mas a textura dificilmente será igual. O formato também poderá ser diferente;
- QUEM APROVOU? No Brasil, o produto ainda não tem aval do governo para ser consumido, mas a carne cultivada obteve as primeiras aprovações nos EUA e o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU) para a criação de protocolos de fiscalização;
- É SAUDÁVEL? A pesquisadora Josefa Garzillo alerta que as carnes cultivadas que precisarem de corantes, aromatizantes e outros aditivos trazem consigo os prejuízos dos alimentos ultraprocessados;
- É SUSTENTÁVEL? O agrônomo Sergio Raposo pontua que a produção em larga escala vai exigir alta demanda de energia e de insumos de origem animal, o que poderia colocar em xeque a expectativa de produção mais “verde”;
- É O FUTURO? Para Luismar Porto, presidente do setor de inovação da JBS, uma das empresas que mais apostam nesse segmento, investir em proteínas alternativas “é um caminho sem volta”, necessário para sustentar uma população crescente.
1. Como a carne é criada
A tecnologia ainda engatinha. A produção, atualmente, é feita sobretudo a partir da coleta das células das espécies mais consumidas: frango, boi, porco e peixe.
VEJA A PRODUÇÃO NO VÍDEO ACIMA, em imagens gravadas no laboratório do Senai Cimatec em Salvador, onde pesquisadores brasileiros cultivam carne de boi, e na Califórnia (EUA), na startup que já recebeu um sinal positivo dos reguladores locais.
No início do processo de criação, a preferência é por células-tronco, que estão em estágio inicial de desenvolvimento e têm o potencial para se transformarem em qualquer outra célula (de gordura, músculo, cartilagem, entre outras).
Depois é utilizado um biorreator, equipamento que cria a condição biológica para que as células se multipliquem. Essa estrutura simula um sistema natural, em que as células são irrigadas por vasos sanguíneos e nutrientes para crescer.
Entenda na arte abaixo.
2. Por que o mundo precisaria de inovações como essa
O agronegócio aposta alto em alternativas como a carne de laboratório porque as fontes atuais de alimento talvez não consigam dar conta do recado por tanto tempo:
- a partir de 2050, a Terra deverá ter 10 bilhões de habitantes, segundo previsões como a do Instituto Francês de Estudos Demográficos (Ined) — é muita gente para ser alimentada;
- o agro também é pressionado para reduzir urgentemente o desmatamento e a emissão de gases estufa, associados à produção de carne convencional, para não piorar ainda mais as mudanças climáticas.
“A carne convencional é, por definição, excludente. Ela não consegue atender a população humana de maneira ampla”, explica Carla Molento, coordenadora do laboratório de Zootecnia Celular da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Outra motivação tem a ver com o sofrimento dos animais.
“O que isso [carne convencional] gera em termos de sofrimento animal é um absurdo. É uma situação muito crítica. Fora que são cerca de 80 bilhões de animais terrestres nas cadeias de produção. (…) É insustentável”, diz a pesquisadora.
3. Sustentabilidade ainda é incógnita
Por mais que prometa redução de diversos aspectos negativos da produção convencional, a carne cultivada é uma incógnita porque ainda não foi produzida em grandes quantidades.
“O desafio maior é esse: colocar em larga escala, em grandes biorreatores, em um custo que seja compatível e acessível. Ninguém fez isso ainda”, diz Luismar Porto, presidente do JBS Biotech Innovation Center.
“Os biorreatores são bem grandes e precisam de controle constante de temperatura, oxigênio e [tem que] manter as células vivas — o que é o mais difícil”, complementa Vivian Feddern, engenheira de alimentos e pesquisadora da Embrapa que estuda o cultivo de filé de frango.
A tecnologia também exigiria um cuidado intensivo para evitar contaminações das células, o que tornaria o processo menos sustentável, segundo o agrônomo Sergio Raposo, pesquisador especializado em pecuária da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
“Os controles têm que ser gigantes, o que aumenta muito o consumo de energia e demais recursos, encarecendo demais o processo”, afirma.
Um desses recursos, segundo Raposo, seria o soro, de origem animal, usado no cultivo.
O g1 questionou os entrevistados para entender mais detalhes sobre o custo de produção e de venda, mas todas as fontes afirmaram que não havia como estimar esses valores ainda.
Mas dá para se ter uma ideia dos custos pelo preço das máquinas usadas na produção em quantidade bem limitada: um biorreator de escala laboratorial custa cerca de R$ 235 mil.
Outra pista sobre os altos valores envolvidos é o investimento da JBS: US$ 100 milhões (cerca de meio bilhão de reais na cotação atual) para criar um centro de pesquisa em carne cultivada em Florianópolis e em outro projeto em San Sebastián, na Espanha.
Já na carne convencional, o ciclo completo para criar um boi representa um gasto de R$ 151,83 a cada 15 kg do animal, segundo o Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária. Depois disso, entram os custos dos frigoríficos para cortes, armazenamento e distribuição, entre outros.
Vale ressaltar também que alguns especialistas consideram a carne cultivada menos promissora no quesito de sustentabilidade em comparação com a carne à base de plantas. É que a segunda pode exigir menos gasto de energia e insumos de origem animal, de acordo com Carla Molento, da UFPR.
4. Segurança para consumo
Ainda não se sabe se será seguro comer porque a carne cultivada ainda está no início do processo de aprovação nas principais agências reguladoras do mundo.
No entanto, ela já teve sinais positivos em grandes mercados, como o dos EUA, em um caso que ilustra a dificuldade de criar um protocolo de fiscalização de um produto tão inovador.
“Foi um dos primeiros lugares do debate (sobre) o que é (a carne)”, explica Alexandre Cabral, vice-presidente de Políticas Públicas do The Good Food Institute. “E eles decidiram que não era possível determinar se era um alimento de origem animal. Vem de uma célula animal, mas não vem de um animal crescendo e sendo abatido.”
Por isso, além da supervisão do Departamento de Agricultura, o processo de regulamentação nos EUA também passa pela FDA, agência reguladora de medicamentos, que já deu sua aprovação para fábricas de duas startups.
Além da aprovação em grandes mercados, outra esperança da indústria passa pela Organização para Agricultura e Alimentação das Nações Unidas (FAO).
O órgão realiza reuniões com as principais autoridades do mundo da área e há a expectativa de que assim possa surgir um “protocolo global” de regulação.
Em paralelo com as discussões sobre segurança, um possível ponto fraco seria o valor nutricional da carne, destaca Josefa Garzillo, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP).
“Entre as opções de alimentos criados em laboratório disponíveis [em fase de teste] hoje, nenhuma delas é suficientemente desenvolvida para ser estruturalmente similar às suas versões in natura.”
Ela também alerta para o consumo de carnes cultivadas com aditivos, como nuggets e hambúrgueres, que continuariam sendo alimentos ultraprocessados e prejudiciais à saúde.