A caminhonete possante vence as irregularidades no asfalto nos 339 km entre Manaus e Itapiranga, primeira etapa da viagem que vai levar Mariano Cenamo, 42, à Reserva de Uatumã, onde começa sua aventura como empreendedor social na Amazônia há 18 anos.
As veias viárias abertas na floresta transportam o fundador do Idesam (Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia) para a epopeia do avô materno na década de 1970.
Ettore Colini era general do exército de Benito Mussolini, mas fugiu da Itália para escapar da morte por traição ao regime fascista, conta o neto. Seu destino era Buenos Aires, mas na parada no Brasil conheceu a futura esposa, e por aqui ficou.
O engenheiro civil trabalharia em obras emblemáticas, como a do Terraço Itália, na capital paulista, e da faraônica e inacabada Transamazônica, projeto de integração nacional do governo Médici (1969-1974).
“Pela saga do destino, ele foi contratado pela empresa que construiu o trecho onde está Apuí, cidade surgida durante as obras e que é um dos lugares de maior atuação do Idesam”, relata o neto.
No município do sul do Amazonas nascia há dez anos um projeto social que daria origem ao Café Apuí, exemplo de como Cenamo aposta no desenvolvimento de cadeias produtivas para manter a floresta em pé.
“Tento consertar o prejuízo que meu avô causou”, brinca ele, sobre a lógica de desenvolvimento patrocinada pelos militares durante a ditadura.
“Estamos reflorestando áreas desmatadas com sistemas agroflorestais para produção de um café premium, com certificação orgânica, produzido 100% por agricultores familiares”, explica.
Faz contas com entusiasmo: “O café agroflorestal gera uma receita de R$ 6.000 a R$ 8.000 por hectare/ano. Já a pecuária, atividade predatória até então dominante, rende de R$ 600 a R$ 800. Conseguimos 10 vezes mais”. Graças a plano de negócios e modelagem financeira com parceiros como Instituto Vale, WWF e Farm.
O neto de Colini chegou a Amazônia para atuar na perspectiva do manejo sustentável da floresta, de olho no incipiente mercado de crédito de carbono.
Terminara a graduação na Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), unidade da USP em Piracicaba (SP), com a ideia de trabalhar na lógica da compra e venda de crédito de carbono para reduzir a emissão de gases do efeito estufa.
O recém-formado chegou a se inscrever em um mestrado na Costa Rica. Ao pedir carta de recomendação ao seu ex-professor Virgilio Viana, então secretário de Meio Ambiente do Amazonas, Cenamo foi convencido pelo mentor a se mudar para Manaus.
Superintendente da Fundação Amazônia Sustentável, Viana salienta inteligência, criatividade e flexibilidade do pupilo. “É uma história de sucesso que nasce de um sonho e tem contribuição relevante na bioeconomia da Amazônia.”
Cenamo se definia no começo como ING (indivíduo não governamental). Por meses, a organização era ele e um computador numa mochila. “Uma ONG de garagem.”
O jovem paulistano de 23 anos e padrinho poderoso enfrentou desconfianças. “As outras organizações me receberam mal. Quem é esse moleque?”, relata. “Sofri, tomei rasteiras, mas me mantive firme.”
A mudança veio com o convite para a rede de líderes da Avina em 2006. “Foi aí que me senti parte do clube.” O surfista e jogador de rúgbi hoje é o diretor de novos negócios de uma ONG com 60 colaboradores e orçamento anual de R$ 15 milhões. Deixou para trás a corrida por editais para financiar projetos e hoje escolhe parceiros como Natura, Ambev, Coca-Cola.
Momento que lhe permitiu mudar com a família para o Rio e depois para Florianópolis, quando ele e a mulher, Suelen Marostica, 40, decidiram ter o primeiro filho perto dos avós. Em maio, Mathias, 4, passeou no Amazonas.
“Fomos para uma comunidade a duas horas de barco de Manaus. Passamos horas nadando no rio, pescando”, conta Suelen. “A floresta se materializou na cabecinha dele.”
Cenamo passa uma semana por mês no Amazonas. Em agosto, voltou à Reserva do Uatumã, onde tudo começou, ao obter o primeiro contrato com o WWF para criar o plano de gestão local. Visitou algumas das comunidades espalhadas pelos 424.430 hectares da reserva.
Para chegar lá é preciso vencer cinco horas por uma rodovia esburacada até pegar o barco para mais duas horas rio acima. É recebido com entusiasmo por líderes das cinco associações de moradores envolvidos nos projetos apoiados pelo Idesam, entre eles uma miniusina de óleos essenciais.
“Um litro de óleo de breu, resina coletada em árvores da reserva, é vendido por R$ 1.100. Produzimos 12 litros por semana”, diz Vanderlei Soares, administrador da usina. “É uma riqueza que antes se perdia na floresta. O Idesam trouxe esse conhecimento e criou a Inatú, marca dos nossos produtos. A gente vai buscar o breu no coração da mata e deixa ela de pé.”
Cenamo se empolga com arranjos produtivos que geram renda para 1.500 famílias. “Estamos falando de um faturamento de R$ 4,5 milhões em três anos, em vendas de produtos madeireiros e não madeireiros com certificação rigorosa para garantir que o recurso natural é extraído de forma sustentável.”
Em 2021, o trabalho do Idesam ganhou o impulso da Amaz, aceleradora que já investiu em 12 startups. “Criar um ecossistema é o melhor caminho para maximizar o nosso potencial de impacto.”
Construir uma nova economia depende da junção de saberes, diz Cenamo. “De empreendedores que já têm acesso a capital e formação com caboclos que têm inteligência fundamental para o sucesso de qualquer negócio, que é saber como operar na região, compreendendo a natureza e o ritmo daqui”, conclui o forasteiro que trocou o mar e a prancha pelo rio e um wakeboard para surfar nesta onda.
PROJETO EM NÚMEROS
– R$ 25 milhões no fundo da aceleradora Amaz para investir em startups de impacto
– R$ 4,5 milhões em faturamento da marca coletiva Inatú com óleos essenciais e produtos de manejo sustentável em 3 anos
– 10 milhões de hectares de florestas preservados com apoio da ONG em 18 anos
– R$ 1 milhão em receita anual do Café Apuí, produzido por Idesam e parceiros; com novo investimento dobra área de produção para beneficiar 110 agricultores familiares