Uma impressora 3D solta uma solução aquosa e, em cerca de uma hora, ela se transforma em um pequeno material que, à primeira vista, assemelha-se a um plástico. Essa substância, no entanto, é um tecido fabricado artificialmente que será usado para testes de cosméticos. Hoje, substitui o uso de animais; no futuro, poderá ser aplicada à pele humana que não consegue se regenerar.
São essas as premissas que guiam a 3DBS (3D Biotechnology Solutions), startup que tem uma parceria com a faculdade São Leopoldo Mandic. A empresa atua com uma tecnologia chamada bioimpressão.
“Utilizamos materiais vivos, como células humanas, para reconstrução de tecidos humanos”, resume Ana Luiza Millás, diretora de pesquisa e desenvolvimento da empresa e doutora em engenharia química pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
“Hoje em dia, é possível fazer pequenos tecidos, como cartilagem, fragmentos de ossos, peles e modelos de tumor, com a tecnologia de bioimpressão, mas a promessa é que no futuro teremos órgãos mais complexos para entrar nas filas de transplante. Eu acredito que isso vai acontecer daqui a dez a 20 anos”, explica a pesquisadora.
A bioimpressora automatiza a construção de tecidos biológicos de forma padronizada e escalável. Ela funciona por meio de arquivos digitais, que são como desenhos que a impressora lê e imprime, camada a camada, exatamente com a forma que o pesquisador desejar.
Quando comparada a impressoras 3D convencionais, uma bioimpressora tem suas diferenças. Ela precisa ficar em um ambiente totalmente asséptico, para evitar contaminações, e com células, funciona na temperatura máxima de 37°C. Uma impressora 3D comum, por exemplo, pode chegar até 240°C, diz Millás.
Além disso, para gerar um material orgânico, a bioimpressora utiliza polímeros que são compatíveis com o corpo humano e biodegradáveis, como o colágeno e o ácido hialurônico.
A partir daí, essas substâncias são misturadas em uma solução aquosa, transformando-se em um hidrogel, e depois é feita a adição de células humanas. Todo esse processo resulta na chamada biotinta, a matéria-prima básica de uma bioimpressora, que possibilita a formação de tecidos biológicos.
Atualmente, a 3DBS só trabalha com a bioimpressão de tecidos utilizados na indústria cosmética e farmacêutica. Esses materiais simulam uma pele real, evitando o uso de animais como cobaias para testar esses produtos, mas não tem a mesma complexidade do maior órgão do corpo humano.
“Nós estamos reconstruindo camadas da pele e uma delas atua como barreira a entrada de microorganismos e proteção a desidratação”, explica Millás.
No entanto, a intenção da empresa é atingir a medicina regenerativa, ramo da saúde que atua diretamente com o organismo de seres humanos. Um exemplo seria o desenvolvimento de um biocurativo que poderia ajudar na regeneração de uma pele que sofreu uma grande queimadura.
Atingir esse fim demanda vascularizar o material. Um tecido impresso que não é vascularizado, ao ser aplicado em um ser humano, não consegue se manter por muito tempo saudável porque não receberia nutrientes e oxigênio pela falta de vasos sanguíneos.
Desenvolver um tecido vascularizado consiste principalmente em adicionar mais células, tornando o processo de impressão mais complicado, por deixá-lo mais próximo do natural ao corpo humano.
Atualmente, a startup utiliza dois tipos celulares —queratinócitos e fibroblastos, encontradas na pele humana. Para vascularizar o tecido, seria preciso adicionar mais dois tipos de células —as endoteliais e os pericitos, relacionadas com as formações dos vasos sanguíneos.
Outro desafio de formar tecidos vascularizados é o próprio avanço tecnológico. “Conforme você for complexificando a quantidade de células e o tamanho das estruturas [dos tecidos], você vai colocando cada vez mais pressão nas tecnologias [necessárias para a bioimpressão]”, afirma Pedro Massaguer, presidente da 3DBS.
Ernesto Goulart, pesquisador do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células Tronco da USP, trabalha com bioengenharia tecidual e explica que a vascularização do tecido também pode ocorrer por um processo do corpo humano chamado angiogênese que consiste na formação de vasos espontâneos.
“As células começam a sentir que está faltando oxigênio em um tecido e daí sinalizam para as células vasculares próximas para fazer a angiogenese [de forma a formar novos vasos sanguíneos onde está defeituoso]. Então não necessariamente é preciso projetar todo o sistema vascular [do tecido impresso] porque o próprio corpo pode colaborar com a angiogênese”, afirma.
O objetivo de se aproximar o máximo possível de órgãos naturais pela bioimpressão se relaciona à biomimética, conceito que consiste basicamente em “chegar ao mais próximo do tecido nativo [de uma pessoa]”, afirma Millás.
Nesse caso, além de vascularizar os tecidos para ter as funções naturais da pele humana, os pesquisadores também se preocupam com o aspecto visual. Segundo Millás, a ideia é que o material, depois de ser aplicado, se adapte ao corpo de forma a ficar semelhante ao resto da pele.
“Depois de aplicado em uma ferida, a tendência é que [o material] ajude a regenerar o tecido e, com o tempo, será absorvido pelo corpo. Não é igual um curativo que você põe e depois precisa tirar. Na realidade, o próprio corpo assimila”, explica.
As expectativas de validar o uso de tecidos bioimpressos em humanos, entretanto, ainda têm um longo caminho. A empresa planeja iniciar os testes pré-clínicos em animais dos materiais sem vascularização em janeiro ou fevereiro de 2022 —para aqueles com vascularização, a previsão é para o primeiro semestre do próximo ano.
Ainda será necessário fazer os testes clínicos junto a humanos. Só depois disso, será possível entrar com um pedido de avaliação na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para iniciar a autorização do produto.
Goulart também ressalta que os testes em laboratórios não são suficientes para indicar o sucesso de um projeto como este.
“Muitas vezes nós vemos um ótimo resultado nos laboratórios e então fazemos teste em animais que podem dar certo ou não. Se deu certo, pode ser que quando chegar ao humano dê errado. Isso acontece porque as respostas são muito diferentes e estamos aumentando a complexidade do sistema”, diz.