Tomar banho, escovar os dentes, lavar as mãos, cozinhar. A rotina de praticamente qualquer pessoa envolve o uso de água para diferentes atividades essenciais — e, em meio à pior seca dos últimos 91 anos, empresas de diferentes setores procuram maneiras de garantir o próprio abastecimento. Não à toa, shopping centers, universidades, indústrias e supermercados estão entre os principais clientes de empresas que atuam dentro de um nicho bastante específico — e que cresceu em 2021: o do “saneamento particular”. A expressão, em um breve resumo, inclui empresas altamente especializadas, que se comprometem a fornecer água (potável ou de reúso) para outras companhias, sem depender de concessionárias tradicionais. E como isso é feito?
Em relação ao fornecimento de água potável, uma solução aparentemente antiga: a escavação de poços e o posterior tratamento da água retirada desses locais — já que muitas vezes ela vem com minérios em quantidades não recomendadas para consumo humano ou que possam danificar máquinas. Já no campo do reuso, está o tratamento do esgoto, feito em uma série de etapas para que a água que seria descartada possa ser reutilizada em aplicações como: regar jardins, lavar carros, uso em ar-condicionado e em privadas.
Uma das empresas responsáveis por ambos os tipos de serviços é a General Water. A companhia faturou 80 milhões de reais no primeiro semestre de 2021 — foram 60 milhões de reais em 2020 — e tem a projeção de aumentar esse número para R$ 100 milhões no ano que vem. “Em média, a GW cresce 15% ao ano de forma bem sustentável, preservando margens de lucro. No início da pandemia, tivemos de flexibilizar contratos com nossos clientes, mas a partir do fim do ano passado, já notamos retomada na procura por nossos serviços”, diz Fernando de Barros Pereira, CEO da General Water, à EXAME.
Fundada nos anos 1990 para cavar poços artesianos para o setor privado, a GW também passou a lidar com o tratamento de efluentes em 2005. A decisão, entretanto, não veio de um “insight” de negócios, mas de uma provocação feita por um dos clientes — uma grande montadora — que não queria ter de arcar, sozinha, com o tratamento da água proveniente do poço e perguntou se a companhia conseguiria realizar essa tarefa.
Depois do primeiro cliente com a nova frente de serviços, a empresa levou outros quatro anos até tornar essa operação rentável. De lá para cá, o tratamento de efluentes se tornou a principal fonte de receita da companhia, respondendo por cerca de 60% do total.
A alta procura, segundo a companhia, está no fato de que consegue gerar alta eficiência a partir do reuso. “Em grandes complexos, conseguimos substituir de 40% a 70% o uso desnecessário de água potável, como em privadas ou para regar jardins, por exemplo, pela água não potável tratada por nós. Em muitos casos, zeramos o esgoto produzido por empresas”, diz Fernando.
Em uma breve explicação, esse processo de tratamento ocorre da seguinte forma:
A alta demanda por esses serviços faz com que até mesmo companhias fundadas há menos tempo possam ter resultados e perspectivas de crescimento. É o caso da NeoWater, startup fundada em 2019 também para lidar com poços artesianos e que desde 2020 presta o serviço de tratamento de efluentes, inclusive para reúso. A companhia triplicou de tamanho só dentro da vertical de concessionária particular no primeiro semestre de 2021 (em relação ao mesmo período de 2020). A empresa não divulga valores absolutos de faturamento.
“Com esse crescimento, deixamos de lado a empresa de perfuração de poços isolada para nos tornarmos uma empresa de saneamento particular, que perfura poços aos clientes que quiserem tratar a água que vão receber”, diz Pedro Graziano, CEO da NeoWater, em entrevista.
Para isso, a companhia ressalta, assim como a GW, que o investimento em tecnologia é fundamental para conseguir realizar o tratamento com eficiência e a custos competitivos para o setor privado. Em números, a NeoWater afirma que consegue atingir uma economia de 10% a 70% na captação e tratamento de água e esgoto quando comparada com o gasto atual dos clientes com as concessionárias públicas.
Ainda como parte do investimento em tecnologia, a companhia também utiliza sensores em todo o processo de fornecimento de água de reúso, para que os clientes consigam acompanhar por meio do próprio celular como a água está em cada ponto do processo até ser reutilizada. “Isso funciona muito bem para indústrias que têm linhas de produção, sabem quanto a água está gastando por turno, por exemplo”, diz Pedro.
Água que seria descartada pode se tornar potável de novo?
A “aposta certeira” das empresas casa com o momento de evolução das discussões sobre saneamento e a responsabilidade sobre os resíduos descartados. É uma história que, de certa forma, começa em 2000, com a lei que criou a Agência Nacional de Águas, passa pela submissão do Projeto de Lei 7818/2014, que visa estabelecer normas para a captação de água da chuva e chega até à aprovação do Marco Legal do Saneamento Básico (Lei nº 14.026/20) que estabelece, por exemplo, que, até 2033, 99% da população brasileira deve ter acesso à água tratada e 90% deve ter acesso à coleta e tratamento de esgotos. Além disso, a norma também regulamenta o reuso de efluentes sanitários tratados, de acordo com normas ambientais e de saúde pública.
Daí para o tratamento da água até ela se tornar potável novamente, entretanto, o caminho será bastante longo no Brasil, apesar dos incentivos recentes. Um fator apontado por fontes ouvidas pela EXAME para isso é a portaria 888/2021 do Ministério da Saúde que estabelece todos os parâmetros de controle e padrão de potabilidade — e, portanto, deve funcionar como um guia para empresas que, futuramente, pensarem no reúso como uma opção de água potável.
“O conceito de água potável dessa portaria é interessante: água que atenda os parâmetros e que não ofereça risco à saúde. É um critério até redundante, mas que pode dificultar, em alguma medida, a adoção desse tipo de reúso por empresas. Imagine adotar esse serviço e, em seguida, algum funcionário ficar doente? Nenhuma empresa quer arcar com esse tipo de situação. É algo que terá de ser discutido nos próximos anos para trazer critérios mais claros e minimizar o risco, principalmente para empreendedores que decidirem entrar nessa área”, diz Eduardo Ferreira, sócio da área de Direito Ambiental do Machado Meyer Advogados.
Enquanto o Brasil está alguns passos atrasado nessa discussão, outros países já conseguem fazer o tratamento de efluentes, conseguindo devolvê-los como água potável. O exemplo mais emblemático está em Israel, país que consegue reaproveitar 87% da água consumida, principalmente aplicando essa água na irrigação de plantações. Em Tel Aviv, o reúso chega a 100% da água consumida, segundo dados de 2018.
Por que o reúso ainda não chega para a maior parte das pessoas
O primeiro fator — e mais óbvio — está relacionado aos índices de saneamento básico no Brasil. Hoje, 5,5 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada e quase 22 milhões não têm acesso a esgoto nas maiores cidades do país, segundo o Ranking do Saneamento produzido anualmente pelo Instituto Trata Brasil, referência no segmento.
“O Brasil ainda não trata metade dos esgotos que gera (49%), o que representa jogar na natureza, todos os dias, 5,3 mil piscinas olímpicas de esgotos sem tratamento. Nas 100 maiores cidades, em 2019, descartou-se um volume correspondente a 1,8 mil piscinas olímpicas diárias”, diz relatório publicado pela instituição em março de 2021.
Nas regiões onde não há saneamento básico, tampouco há tarifas para pagar por esse tipo de serviço. E, portanto, acaba sendo mais difícil para as empresas convencerem outras companhias da necessidade de tratar água e reutilizá-la. O cenário também pode colaborar para a falta de uso e escavação de poços artesianos, o que também não contribui para um uso mais racional e eficiente da água, segundo as empresas ouvidas por EXAME.
Nesse sentido, o Marco Regulatório do Saneamento pode representar o início de discussões mais aprofundadas sobre o tema. “Não é um fim em si mesmo, mas pode ser o pontapé para evoluirmos em questões de saneamento, nas quais o Brasil realmente teve dificuldades de avançar nos últimos anos”, diz Eduardo Ferreira, sócio da área de Direito Ambiental do Machado Meyer Advogados.
Do lado desses argumentos, está um estudo da Confederação Nacional da Indústria, que apontou em 2019 que a falta de concorrência no setor de saneamento seria o principal problema para investimentos no setor.
“A falta de concorrência afeta a expansão do atendimento e investimentos e a capacidade de gestão do setor. Além disso, o atual contexto fiscal reforça a necessidade do aumento da participação privada (atualmente responsável pelo atendimento de 9% da população). A indisponibilidade de recursos públicos não permitirá que companhias sem capacidade de investimento expandam os serviços de água e esgoto”, diz o estudo.
Contudo, a entrada de mais agentes privados no setor está longe de ser uma unanimidade para resolver o problema do saneamento e do reúso de água aplicado em larga escala no Brasil. Isso porque, com mais empresas em vários pontos de prestação de serviços, a questão que se levanta é: até onde vale a pena aumentar tarifas para tornar o setor mais atrativo às companhias que atuarão nele? Quanto as tarifas vão aumentar para acompanhar esse ritmo? Não há um consenso completo para essa resposta.
E, por fim, superados esses desafios, é necessário ter um amplo volume a ser captado. No caso da GW, esse número é de 1.200 metros cúbicos por mês — ou o equivalente ao consumo de 270 pessoas, o que daria cerca de 60 a 70 residências.
Enquanto isso, poços continuam sendo opção
Enquanto ainda não é possível fazer isso no Brasil, a GW também continua escavando e “operando” poços artesianos para clientes privados, uma vertical que ainda é responsável por 40% da receita da companhia. Ao todo, a empresa cuida de 240 poços atualmente, em 140 clientes.
Entre os clientes dessa oferta combinada de serviços (escavação de poços e tratamento de efluentes) estão o Shopping D&D e o complexo WTC, Aeroporto Internacional de Guarulhos e Hospital Samaritano.
Em nota, a GRU Airport, concessionária que administra o Aeroporto Internacional de Guarulhos, afirma que “desde 2014, com a entrada em operação do Terminal 3, vem tomando ações para otimizar a utilização do sistema hídrico do equipamento. Alguns exemplos dessas ações são a captação e reúso de água de chuva; reúso da água do sistema de refrigeração de todo Terminal Internacional e tratamento da água do sistema de efluentes para utilização na limpeza dos pátios de aeronaves”. E que, desde 2019, ampliou o trabalho de gestão desses processos junto à General Water.
Além da atuação no setor privado, a GW também tem o contrato de concessão para fornecer água potável (também a partir de poços artesianos) para a cidade de Porto Feliz, que tem cerca de 100 mil habitantes. Segundo Fernando, o foco está em cidades menores e, hoje, a empresa também participa de processos nas cidades de Hortolândia e Coxim, além de mirar consórcios no Amapá.
Do lado da Neowater, que trabalha exclusivamente para o setor privado, a companhia ressalta que o investimento para se ter um poço artesiano não é algo competitivo para qualquer pessoa: o investimento para tal fica em torno de 40 mil reais, em média.
Para ambas as empresas, o que falta para evoluir é uma certa quebra de paradigma sobre o consumo de água no Brasil: um país que tem muita água, mas que ainda precisa de investimentos consistentes em saneamento para tornar opções como o reúso e o tratamento de água e esgoto acessíveis a todos. É um conceito traduzido na afirmação de Pedro Graziano, CEO da NeoWater: “Não podemos mais viver o presente com a água do passado”.