Em 19 de junho de 1872, graças a uma autorização do imperador Dom Pedro II, a companhia Carris de Ferro Porto-Alegrense foi autorizada a funcionar. Inicialmente, a empresa operava bondes puxados a burro e, em 1908, inaugurou o serviço de bondes elétricos, que seria desativado em 1970. Em 1930, a empresa passou a oferecer também o transporte por ônibus, principalmente, para as localidades onde as linhas de bonde não chegavam. Em 1954, a Carris foi encampada pela prefeitura. A Companhia Carris Porto-Alegrense é a mais antiga empresa de transporte coletivo em atividade, no país.
Em meados do último mês de junho, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, enviou o PL Nº 013/2021 para a Câmara de Vereadores. O projeto de lei autoriza a prefeitura a “alienar ou transferir, total ou parcialmente, a sociedade, os seus ativos, a participação societária, direta ou indireta, inclusive o controle acionário, transformar, fundir, cindir, incorporar, dissolver, extinguir ou desativar, parcial ou totalmente, a Companhia Carris Porto-Alegrense (Carris), por quaisquer das formas de desestatização estabelecidas na legislação pátria …”.
A iniciativa do prefeito de Porto Alegre nos remete a uma decisão emanada da Prefeitura de São Paulo, em 1993, que culminou com a “privatização” da Companhia Municipal de Transportes Coletivos – CMTC, sociedade de economia mista, criada em 1947, com o propósito de assumir os serviços de transporte realizados por 730 bondes, operados pela “The São Paulo Tramway, Light and Power Company”, bem como operar uma frota de 770 ônibus, a maioria proveniente de empresas privadas que foram encampadas. Quando a CMTC passou a operar, em julho de 1947, o seu quadro de pessoal era de 7.362 empregados e, em 31 de dezembro daquele mesmo ano, esse número já tinha subido para 7.987 empregados.
Ao longo de mais de 45 anos, à semelhança do que aconteceu com a Carris, a empresa passou por bons e maus momentos, muito em função da orientação política dos prefeitos, da disposição de reajustar tarifas para cobrir os custos de produção dos serviços e da disponibilidade de recursos financeiros para a aquisição de novos veículos, manutenção da frota existente e para a conservação das instalações fixas (garagens, oficinas, abrigos, pontos de parada e redes elétricas).
Em 1993, a CMTC operava uma frota de cerca de 2.250 ônibus e 480 trólebus e, como monopolista do transporte coletivo em São Paulo, contratava 47 empresas privadas para operar outros 7.250 ônibus. A sua frota própria era distribuída em 11 garagens localizadas, na sua maioria, bem próximas da região central da cidade. A empresa possuía um quadro de pessoal da ordem de 27.300 empregados, que haviam acumulado, ao longo dos anos, vários benefícios e vantagens trabalhistas.
Para cobrir a diferença entre o volume de recursos necessários para manter a companhia funcionando e a receita auferida com a operação da sua frota de ônibus e trólebus, a Prefeitura precisava transferir para a empresa, mensalmente, cerca de U$ 41 milhões, a título de subvenção. Vale registrar que nenhum centavo desse montante se destinava a subsidiar os passageiros do sistema de ônibus que operava à época.
Assim, com uma frota envelhecida e composta por 28 modelos de ônibus e trólebus, estoque de reposição com cerca de 28 mil itens cadastrados, garagens mal localizadas, do ponto de vista operacional, e um quadro de pessoal inchado, gerando um déficit orçamentário diário de cerca de U$ 1,4 milhão, tornou-se mais do que necessário adotar alguma providência, a curtíssimo prazo, para reorientar o modelo de negócio e reduzir a enorme dependência financeira que a empresa tinha de recursos públicos.
Na tentativa de salvar a CMTC, foi realizado um estudo detalhado de reengenharia, cujo objetivo era analisar as possibilidades de manutenção das suas atividades, fossem elas do ponto de vista institucional, empresarial ou operacional. Dentre as várias opções apresentadas para melhorar o desempenho da empresa, analisou-se a possibilidade da operação de linhas troncais em corredores segregados, a operação exclusiva de linhas alimentadoras de terminais de integração e até uma operação seletiva, utilizando somente veículos elétricos ou de grande porte.
Como nenhuma hipótese mostrou ser viável, passível de ser implantada num prazo razoável e capaz de reduzir, drasticamente, o prejuízo gerado aos cofres públicos, na condição de acionista majoritária, a Prefeitura determinou o encerramento das atividades da companhia.
Considerando as questões jurídico-administrativas, a situação econômico-financeira e o passivo trabalhista da empresa, optou-se por um processo diferenciado de privatização. Assim, para atingir o resultado esperado, decidiu-se transferir para a iniciativa privada, via processo licitatório, a operação das garagens, das linhas e da frota e não o controle acionário da empresa.
Para realizar a transferência da operação das linhas, nos moldes da legislação vigente à época – Lei Municipal Nº 11.037/91 –, o processo licitatório foi dividido em três etapas. Na primeira, foram abertas vinte concorrências públicas, para a contratação de empresas privadas para a operação das linhas de ônibus, com novos veículos, pertencentes às empresas vencedoras do certame licitatório. Após a assinatura dos contratos com as 17 empresas vencedoras da licitação, cerca de mil novos ônibus foram introduzidos no sistema, substituindo veículos velhos da CMTC, que foram desativados e leiloados como sucata.
Numa segunda etapa, foram realizadas outras quatro concorrências públicas, cujo objeto foi a operação das linhas de ônibus; porém, utilizando cerca de 1.500 ônibus ainda de propriedade da CMTC. Quando algum veículo dessa frota atingia o limite da sua vida útil ou perdia as condições de operacionalidade era, então, substituído por ônibus novos, de propriedade da empresa privada.
Numa terceira etapa, foram realizadas mais três concorrências públicas, para a transferência da operação das linhas das três garagens que operavam veículos elétricos, do tipo trólebus. Nesse caso, adotou-se o conceito de operação de frota pública, ou seja, a empresa privada deveria operar as linhas com veículos pertencentes à empresa pública, pagando aluguel pela utilização da frota e das instalações fixas – garagem, pátio e oficinas – que continuaram de propriedade da CMTC.
A operação da frota própria das empresas privadas, dos ônibus de propriedade da empresa pública, com posterior substituição por veículos novos, e dos veículos da frota pública só foi possível porque a remuneração dos serviços contratados se dava com base no custo efetivo de produção dos serviços, acrescido de uma taxa de administração, nos termos da citada Lei Municipal Nº 11.037/91.
No processo de terceirização das atividades operacionais, especial atenção foi dada aos empregados da CMTC, que foram sendo desligados, à medida em que as empresas privadas assumiam os serviços, antes realizados pela empresa pública. Todos os empregados demitidos tiveram seus direitos trabalhistas respeitados, suas verbas rescisórias devidamente pagas e boa parte deles foi admitida pelas empresas vencedoras dos certames licitatórios. Houve, ainda, uma parte significativa do pessoal demitido que frequentou cursos ministrados pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE, para aprender a gerir os seus próprios negócios, quando deixassem a empresa pública.
Assim que encerradas as atividades da Companhia Municipal de Transportes Coletivos – CMTC, em 8 de março de 1995, nascia a São Paulo Transporte S/A – SPTrans que, com um pouco mais de mil empregados, todos oriundos da extinta CMTC, se propunha a ser uma empresa de inteligência na sua área de atuação.
Para que a SPTrans pudesse cumprir a sua missão e realizar os seus objetivos estratégicos era preciso que a nova empresa abdicasse da sua longa experiência adquirida na operação e na manutenção de ônibus. Os novos desafios, agora, deveriam estar concentrados no planejamento dos sistemas de transporte, no aperfeiçoamento dos sistemas de gestão, no desenvolvimento de novas tecnologias e no aprimoramento da qualidade dos serviços prestados à população.
Como era de se esperar, essa transformação envolvia não apenas a alteração do seu escopo de trabalho; mas, principalmente, uma nova compreensão do seu papel institucional e uma drástica mudança no comportamento dos técnicos, dos especialistas e até do pessoal de direção da empresa.
O prazo para a execução de todo o processo de privatização, com a transferência da operação de todas as linhas da CMTC e dos veículos ainda em condições de uso às empresas privadas, bem como o completo encerramento das atividades operacionais da companhia não durou mais do que 20 meses.
Wolfgang Franz Josef Sauer, CEO da Volkswagen do Brasil e da Autolatina (“joint venture”, criada com a fusão da Volkswagen do Brasil e da Ford do Brasil, que perdurou de 1987 a 1996) e último presidente do Conselho de Administração da CMTC disse: “Com orgulho acompanhamos o processo de privatização das atividades operacionais da CMTC, desenvolvido dentro das mais modernas regras da administração pública. A privatização permitiu uma substancial economia de recursos municipais, antes gastos na subvenção da empresa pública, que, agora, deverão ser aplicados em obras sociais.”
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(*) Francisco Christovam é assessor especial do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo – SPUrbanuss e, também, membro da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo – FETPESP, da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, do Conselho Diretor da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU, da Confederação Nacional dos Transportes – CNT e do Conselho Consultivo do Instituto de Engenharia.
*Os artigos publicados com assinatura, não traduzem necessariamente a opinião do Instituto de Engenharia. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo