Desde a administração de Pedro Parente (governo Temer), o Preço de Paridade de Importação (PPI) dos combustíveis, que passou a ser adotado pela Petrobrás, tem sido objeto de uma intensa campanha que busca entronizá-lo como a única opção de uma prática de mercado de feitio liberal.
Há nesse modelo um vício de origem, pois o elemento na base de toda precificação de derivados, o próprio petróleo, não tem seu preço formado pelas forças livres do mercado. A ideia de que há um mercado de petróleo, onde oferta e demanda se ajustam em um equilíbrio de forças ótimo, não se sustenta. Afinal, se um grupo de nações produtoras se reúne na OPEP, formando um cartel, para controlar a oferta e relaciona o preço alvo com as necessidades de financiamento dos seus países, onde está a “mão livre do mercado”? O preço do petróleo e, por conseguinte, de toda a cadeia de derivados, é então fortemente determinado pelo interesse de países produtores, que se organizam na OPEP. Utilizando suas empresas nacionais de Petróleo (NOCs), com o intuito de definir o nível de produção, obrigam os consumidores a aceitarem o valor por eles determinado.
Sendo assim, por que hoje, apenas o Brasil e a sua NOC, a Petrobrás, ao contrário dos demais países produtores de petróleo, não tem uma política de preços que atenda aos interesses nacionais? Releva observar que a intervenção do Estado nos temas do petróleo, mesmo na meca do pensamento liberal, os EUA, é prática comum. Lá, regulação da oferta para sustentar preços internos e garantir a higidez da indústria é histórica. Até há pouco, havia uma interdição à exportação de petróleo, obrigando que só pudessem ser exportados se sofressem algum grau de processamento, o que funcionava como um controle do preço do petróleo no mercado interno e assegurava a sustentação da capacidade de refino. Apenas com o crescimento da produção do “shale oil” essa interdição foi levantada. Já o preço do gás natural, foi regulado até os anos 90 do século passado.
O PPI não atenta para o conjunto dos interesses envolvidos, dos clientes/consumidores, do Estado, e nem mesmo dos acionistas, que seriam, aparentemente, os beneficiários. Estes têm, a cada crise, seus ativos fortemente desvalorizados.
A Petrobrás foi criada para garantir o abastecimento de derivados ao país em condições que trouxessem competitividade e contribuíssem para o crescimento econômico que avançava na industrialização, a partir da disponibilidade dos combustíveis e de matérias-primas para o mercado. As prioridades à época da sua criação eram a de refinar o petróleo bruto importado, pois a perspectiva da descoberta de reservas de petróleo economicamente exploráveis no país era pequena, e a de abastecer o mercado de derivados. Vale a pena relembrar a declaração do General Horta Barbosa, em 1946, ao
defender a criação de uma estatal para o setor de petróleo no Brasil: “Constitui ideal de economia sã a baixa de preço da energia, para assim, fazer diminuir o custo de todas as utilidades e dos transportes em benefício do povo em geral. Os capitais privados, nacionais ou estrangeiros, procurarão, necessariamente, auferir os maiores dividendos, como sói acontecer em todas as atividades mercantis”. Os programas de investimentos até meados da década de 80 possibilitaram a construção de um parque de refino que, por muito tempo, atendeu bem a toda a necessidade do país, havendo mesmo excedentes exportáveis até há pouco tempo.
A mudança de ênfase dos investimentos do Refino para o da Exploração & Produção (E&P) foi justificável pela descoberta de reservas importantes em águas profundas e pelo sucesso tecnológico da sua exploração, o que não significa que a missão de prover derivados para o país deva ser esquecida.
A Petrobrás, desde a sua criação até a flexibilização do monopólio estatal do petróleo em 1997, trabalhou sempre em sintonia com o Ministério de Minas e Energia (MME), com o Conselho Nacional do Petróleo (CNP) e, posteriormente, com o Departamento Nacional de
Combustíveis (DNC). Quando divergências ocorriam, prevalecia a visão de Estado. Um bom exemplo foi o esforço de instalação da indústria petroquímica no Brasil, que não nasceu do consenso interno da Petrobrás, mas de sua submissão à política industrial de então. Daí ter sido necessária a constituição de uma subsidiária, a Petroquisa, para, além de contornar as questões do monopólio, criar uma instância com orçamento próprio e autonomia estratégica que a permitissem investir com razoável independência em relação à
empresa mãe.
A partir de 2001, a Petrobrás passou a publicar seus planos estratégicos, elaborados de forma que não mais se ligavam, estruturalmente, aos interesses nacionais, privilegiando seus interesses como empresa, como se privada fosse. O lançamento de ADRs na Bolsa de Nova York naquela ocasião refletiu essa equivocada orientação. Afinal, o objetivo do governo de então era o de privatizar a empresa. Chegou-se até a propor a mudança do seu nome para Petrobrax.
Tão grave quanto a mudança do posicionamento da Petrobrás ao se distanciar do seu acionista controlador, o Estado brasileiro, foi a desconexão entre os interesses nacionais e os da empresa ter sido reconhecida e incorporada ao arcabouço institucional que se seguiu à flexibilização do monopólio estatal do petróleo. Na estrutura de governança para o setor, com a extinção do DNC, sucessor do CNP, não houve previsão de um agente que se responsabilizasse por definir os preços praticados pela empresa.
Dentre as instituições então criadas, destaca-se a Agência Nacional de Petróleo (ANP). Entre suas atividades e obrigações não consta a fixação de preços de derivados. Tampouco o MME tem ingerência direta sobre a Petrobrás.
Neste vazio legal, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), órgão de terceiro escalão na estrutura do Poder Executivo, capturado como todas as agências pelo mercado, determinou a quebra do monopólio do refino exercido pela Petrobrás para que se
pudesse criar um “mercado”, para assim equacionar a questão dos preços. A prevalecer essa determinação do CADE, serão constituídos alguns monopólios privados regionais, das multinacionais privadas do setor, devolvendo-nos à condição de dependência delas, da qual nos livráramos desde os anos 70 do século passado.
A partir de 2015, na administração Bendine, estabeleceu-se uma separação mais completa entre o acionista controlador, o Estado Brasileiro, e a Petrobrás. O Conselho de Administração da empresa passou a excluir representantes de Ministérios e outros órgãos do Governo Federal, privilegiando os membros independentes, passando a empresa a viver sob a égide do mercado. A cisão entre a visão de Estado e a atuação da empresa tornou-se, desde então, um fosso intransponível.
A Petrobrás passou a agir de forma absolutamente independente de orientação do seu acionista controlador, o Estado, pois
a) passou a estabelecer seus preços unilateralmente;
b) passou a ter o poder de decidir sobre o percentual de derivados a ser produzido no país, buscando ajustar, nem sempre com sucesso, através do preço, o nível de importação aceitável para maximizar seus resultados, e trocando participação no mercado por maior margem.
c) passou a poder exportar livremente o petróleo produzido no país, a matéria-prima para o refino.
O resultado de tal conjunção de fatores levou o Brasil a ter hoje um refino subdimensionado em relação às suas necessidades. A tentativa de ampliação do parque de refino naufragou por conta do escândalo da Lava Jato, deixando cerca de 40 bilhões de dólares de investimentos não completados. Apenas metade de uma nova refinaria, a RNEST, opera. Tão ou mais criminoso que o roubo havido foi a decisão de paralisar os investimentos na ampliação da capacidade de refino da empresa.
Em função disso, vivemos hoje um déficit estrutural de derivados, em particular no caso do diesel, com importantes consequências sobre qualquer política de preços.
A solução, a partir da gestão Parente, foi a de adotar o PPI, assim definido:
Preço Internacional + Margem e Risco da Petrobrás + Tributos = Preço na refinaria
A fórmula é incoerente, pois soma três parcelas de margem. A margem de um refinador já está incluída no preço de venda ao mercado internacional, pois o remunera e embute o risco do negócio. A segunda parcela é a própria apropriação dos custos de importação
pela Petrobrás, que só deve ocorrer quando houver necessidade de complementar a produção de derivados das suas refinarias, a partir do seu próprio petróleo. Após somar a referência do preço internacional, com a remuneração do produtor já embutida, ao custo
de importação inexistente, a Petrobrás acrescenta um terceiro valor de remuneração, a título de margem ajustada ao risco da atividade.
Estabeleceu-se assim o conceito, de interesse das multinacionais do setor que se preparam para dominar o nosso mercado de combustíveis, de que o PPI é o meio de praticar os preços internacionais dos derivados no mercado interno.
Durante décadas, o CNP e o DNC definiram, sem crises e sem prejudicar a Petrobrás, os preços dos derivados no Brasil, levando em conta os preços internacionais, na parcela importada, decrescente ano a ano, de derivados.
A política do PPI, na prática, abre o nosso mercado ao domínio das multinacionais do setor.
A multiplicação de empresas importadoras gerou, mais recentemente, uma situação curiosa, em que estes solicitam providências ao CADE para sustentar preços elevados dos combustíveis, de forma a manter artificialmente viáveis seus negócios, contra os interesses do país e dos consumidores.
A verdadeira natureza das crises recentes dos usuários de diesel, com o lockout/greve que paralisou o país em 2018, o que acabou por provocar a saída de Parente da Petrobrás e reverbera até hoje, levando à recente destituição de Castello Branco, ainda está mal
compreendida pelos próprios atores. Se a questão do reajuste frequente, mas imprevisível, é de fato relevante, ela foi apenas o estopim, pois a causa raiz está na determinação de precificar o produto produzido internamente com base no maior preço possível , aplicando à economia brasileira solução válida apenas em países que não produzem, nem o petróleo, nem os seus derivados. O Japão, por exemplo, não produz petróleo, mas refina 100% do que consome. O impacto da volatilidade dos preços de petróleo bruto é amortecido pelas margens do refino.
Vivemos hoje sob a capa de um discurso de maximizar os interesses de acionistas, da busca de resultados, que por ser desfavorável aos interesses nacionais e da própria Petrobrás, os prejudicará a médio prazo, o que caracteriza uma gestão temerária. Afinal, deve-se buscar a explicação do que move as ações adiante listadas:
a) Por que a Petrobrás, monopolista do refino, abriu o seu mercado às importações (antes do posicionamento do CADE)?
b) Por que a Petrobrás, teoricamente voltada para o interesse dos acionistas, propõe vender ativos que propiciam o surgimento de concorrentes?
c) Por que o modelo de venda das refinarias aceita a criação de sub-monopólios regionais?
Criou-se o mito da pressão do caixa da Petrobrás para justificar a política de PPI, a fim de maximizar ganhos para a empresa em detrimento de fatia de mercado, cultiva-se a insuficiência da capacidade de refino para atender à demanda nacional e estimula-se a abertura do mercado às importações. Nunca a empresa foi tão sacrificada para atender a um objetivo político – não explicitado – o de reduzi-la a posição insignificante no mercado, antagônico ao discurso vigente de não intervenção.
Nesse quadro, impõe-se a adoção de algumas ações, para que a Petrobrás volte a desempenhar o papel estratégico na indústria de petróleo, que ocupou desde a sua criação:
a) Sustar a venda de refinarias;
b) Implantar o controle de preços, externamente à Petrobrás, para os combustíveis produzidos no país;
c) Vender a produção própria, maximizando a operação das refinarias, cabendo aos agentes de distribuição completarem a demanda, precificando o seu produto como acharem adequado, em ambiente de concorrência;
d) Promover o ajuste periódico dos preços, a intervalos de tempo ou de variação de valor pré-determinados, conferindo previsibilidade e capacidade de os clientes planejarem seus negócios.
Em resumo, no curto prazo, a alternativa é realizável, a partir da precificação dos derivados produzidos pela Petrobrás, segundo o modelo já utilizado no passado. Os distribuidores seriam autorizados a importar diretamente, ou através de terceiros, inclusive da própria Petrobrás, o necessário para atender a demanda interna, criando suas próprias políticas de preço que dessem conta dessa realidade. O fato, lamentável, de a Petrobrás ter se afastado da Distribuição, com a venda do controle da BR é, nas circunstâncias atuais, um facilitador.
Com isso se constrói uma equação virtuosa. Os preços dos combustíveis não estariam descolados da realidade internacional, evitando distorções da demanda que colocariam o país na contramão dos esforços para a racionalização do uso da energia.
A política de preços, socialmente aceitável, reduzirá o risco do negócio de refino.
O incentivo ao investimento privado na expansão da capacidade de refino, por um, auxiliará na recuperação da combalida engenharia nacional e, por outro, dará sustentação à nova política, sinergicamente, pois reduzirá a parcela importada. Por fim, o preço dos hidrocarbonetos deixará de embutir um ônus artificial para as atividades econômicas, contribuindo para a reativação da economia.
A proposição, portanto, equilibra o conjunto das partes interessadas. O Estado Brasileiro retoma o papel estratégico da empresa, um grande produtor de petróleo, vetor importante para o desenvolvimento econômico. Os fluxos de caixa da Petrobrás aumentam de previsibilidade. A redução da incerteza, do risco enfim, é favorável aos negócios da Petrobrás e, por consequência, também aos seus acionistas. Os consumidores deixam de pagar o adicional de importação por um produto produzido localmente, diminuindo a
pressão sobre a redução de impostos, decidida de afogadilho, ou da criação de subsídios.
Ao final, a Petrobrás reforçará seu papel como agente do desenvolvimento do país e os brasileiros respirarão aliviados, sabendo que o preço da gasolina, do diesel e do GLP deixarão de ser origem de sucessivas crises e um peso excessivo nos seus bolsos.
*Pedro Celestino
Presidente do Clube de Engenharia