“Se hoje nós temos Mundo Novo e Catuaí, que são as duas cultivares de café arábica mais utilizadas no Brasil, é porque também teve contribuição das mãos da Dona Ivone através da pesquisa”.
É com essa frase que o pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) Sérgio Parreiras Pereira apresenta Ivone Botone Baziolli, mais conhecida como Dona Ivone, que dedicou 65 anos da sua vida a pesquisas de café.
Ironicamente, ela não é muito fã de um cafézinho. “Nunca gostei muito de café, só coloco um pouquinho no leite”, diz sorrindo.
Por outro lado, trabalhar em meio à natureza sempre a encantou. “As plantas de café são muito lindas, sabe”.
Filha de “uma família simples de roça”, como ela mesma se define, Ivone entrou no instituto com apenas 16 anos, em 1949, e, apesar de ter estudado apenas até a 4ª série do Ensino Fundamental, foi justamente essa formação que abriu, para ela, as portas do IAC, onde trabalhou até 2014.
Durante a sua longa jornada no instituto, ela atuou ao lado dos principais geneticistas do café no Brasil, como Carlos Arnaldo Krug e Alcides Carvalho, já falecidos. Enquanto eles lideravam a equipe de pesquisadores, Ivone ficava à frente dos trabalhos de campo.
“Trabalhei muito no campo, nos arquivos, no viveiro. Era um serviço bastante delicado, tinha que ter muito cuidado.”
“Eu era responsável por muito trabalho, ganhei muito conhecimento. Gostava muito, muito mesmo do que eu fazia”, rememora Dona Ivone, que hoje está com 88 anos.
Equidade racial no café
A contribuição dela para as pesquisas de café já é reconhecida dentro e fora do país.
Filha de uma italiana com um brasileiro negro, Ivone acaba de emprestar o seu nome para uma bolsa de estudos da “Coffee Coalition Racial Equity”, a Coalizão Internacional para a Equidade Racial no Café.
A “Dona Ivone Scholarship” (Bolsa de estudos Dona Ivone), lançada no dia 19 de março, vai apoiar o estudo de universitários e profissionais que atuam no setor cafeeiro.
A Coalização surgiu nos Estados Unidos em 2020 e tem o objetivo de construir uma indústria do café “racialmente diversa e equitativa, onde todos os talentos possam ser reconhecidos”.
No dia do lançamento da bolsa, um documentário sobre Dona Ivone, realizado pela Rede Social do Café em 2020, foi traduzido para o inglês.
Caminho até a pesquisa
Dona Ivone nasceu em Campinas (SP), em 1932, e conta que os seus pais sempre trabalharam no campo. “Eles eram analfabetos, mas trabalharam no café, no algodão, no milho. Então eu fui uma criança criada neste meio”, diz.
“Depois que eu tirei diploma da 4ª série, com 12 anos, fiquei ajudando a minha mãe em casa, fazia comida, lavava roupa. Tomei conta da casa durante 2 anos. Depois eu enjoei e fui procurar trabalho”.
Assim como os seus pais, Dona Ivone foi trabalhar “na enxada”, carpinando milho, café, algodão. Em um dia de 1949, um engenheiro do IAC foi até a fazenda onde ela trabalhava, em busca de uma pessoa que soubesse ler e escrever para atuar na seção de café do instituto.
“Eu fui a indicada. Tive que fazer um teste bem simples, das 4 operações, multiplicar, dividir…uma cópia de um livro, ler um texto e eu fui aprovada com isso”, lembra.
Mundo Novo e Catuaí
Dona Ivone começou a trabalhar então na Fazenda Santa Elisa, onde fica o Centro de Café Alcides Carvalho, local em que são feitos, até hoje, estudos de melhoramento genético das plantas de café.
Ela atuou diretamente nas pesquisas de desenvolvimento das cultivares Mundo Novo, Catuaí, Icatu, Obatã e Tupi. Dessas, as duas primeiras são as mais relevantes, conta o pesquisador Sérgio Parreiras, do IAC.
“De 70% a 80% do que existe hoje de café arábica plantado no Brasil vem desses dois materiais genéticos”, diz Parreiras.
Quando Dona Ivone entrou no IAC, estavam em curso as pesquisas sobre o Mundo Novo, variedade que foi disponibilizada para uso comercial em 1952.
Essa planta surgiu de um cruzamento natural entre as variedades Sumatra e Bourbon Vermelho, encontradas no município paulista de Mineiros do Tietê e, segundo Parreiras, suas sementes foram levadas para dentro do instituto, onde pesquisas geraram uma maior produtividade da planta.
“Já no caso do Catuaí (lançado em 1972) houve um procedimento de fertilização […]. Foi feito um cruzamento até chegar nesta cultivar. O grande diferencial dela é o porte baixo, que facilita a colheita e o manejo“, explica o pesquisador.
Dia a dia de trabalho
Para colocar esses estudos de pé, o dia a dia na Fazenda Santa Elisa era de muito trabalho, conta Dona Ivone.
Um dos pontos mais importantes do processo de pesquisa enquanto ela trabalhou com o pesquisador Alcides Carvalho era a época da florada, período em que as plantas de café dão flores.
Foi ele quem coordenou os trabalhos de desenvolvimento do Catuaí e também estudos contra a ferrugem nas plantações de café.
“E existia um ponto certo para pegar a florada para fazer o cruzamento de plantas”, conta Ivone.
“A florada é rapidinha. Você não pode pegar um dia antes porque está verde. E não pode ser um dia depois porque ela já abriu o pólen e então não servia mais para nada”, acrescenta.
Com o tempo, Dona Ivone foi conhecendo muito bem todos os detalhes das plantas e, por isso, era a ela quem Alcides confiava boa parte do trabalho.
“O Dr. Alcides me chamava e perguntava ‘olha eu quero saber daquela determinada planta’. Eu sabia onde estava, ia buscar e já trazia a resposta para ele se ia dar ou não para trabalhar com ela”, conta Ivone.
Todas as variedades de café têm uma localização específica dentro de uma fazenda voltada para a pesquisa. “Cada uma das plantas tem um número, uma ficha. Tudo isso era detalhado em um caderno”, diz Ivone, que era responsável também pela montagem desses arquivos.
Como a época de floração acontece na primavera, era comum que Dona Ivone passasse os feriados do dia 7 de setembro e 12 de outubro no campo, junto com equipe do IAC.
“Mas eu gostava muito do meu trabalho. Eu gosto muito da natureza. Na época da florada, eu saía para procurar as plantas desejadas por eles [pesquisadores] e me dava aquela emoção de ver”, relembra Ivone.
“Eu moro em frente a uma praça e eu gosto de ficar vendo os detalhes das árvores. Me emociona muito”, diz.
Ela também coordenava as tarefas dentro dos viveiros, liderava a equipe que fazia o plantio e era a ponte entre os pesquisadores e os trabalhadores de campo.
Reconhecimento
Dona Ivone trabalhou 30 anos como funcionária pública do IAC. Depois disso ela se aposentou, mas continuou atuando dentro do instituto por meio de contratos por projetos.
“A Dona Ivone é respeitada por todas as gerações de pesquisadores que passaram pelo IAC, pela pessoa dela, pela seriedade, pelo carinho que ela desenvolveu o trabalho dela a vida inteira”, conta Parreiras.
“Quando eu parei de trabalhar [com 80 anos], eu comecei a sentir muito falta. Então, eu ia almoçar na Fazenda todos os dias, mas com a pandemia não deu mais”, diz Dona Ivone, que já foi vacinada contra a Covid-19.
“Hoje tenho curtido a família, estava frequentado uma igreja onde a gente fazia artesanato. Eu dirijo também, mas minha carta vence em maio. Meu filho mais velho fala assim ‘vai dirigir até quando, mãe?’, conta Dona Ivone, lembrando da época em que pegava a caminhonete para ir campo afora.
Ivone também participa de encontros da Aliança Internacional das Mulheres do Café (IWCA), organização que tem o objetivo de fortalecer as mulheres que trabalham no setor, através de treinamentos e troca de conhecimentos.
Atualmente, ela diz estar orgulhosa da sua trajetória de vida, de trabalho e da família que criou junto com o seu marido, que faleceu em 2017.
“Meus pais eram analfabetos e eu consegui me formar até a 4º série. Já meus filhos têm faculdade, um é engenheiro civil e, outro, engenheiro do trabalho. Tenho três netas, uma está no mestrado. E três bisnetos lindos que são a alegria da bisa”, resume satisfeita.