Há 30 anos o climatologista Carlos Nobre alerta para o tipping-point da Amazônia: o momento em que o desmatamento causará tamanho dano que a Amazônia deixa de ser a maior floresta tropical úmida para virar savana. Quando este desastre acontecer, uma emissão gigante de gases-estufa irá para a atmosfera, a temperatura da região aumentará, as geleiras andinas encolherão mais, os rios amazônicos sofrerão, a produção de grãos ficará inviável no Cerrado. A lista de impactos assusta.
Ultrapassar o ponto de não retorno é como esbarrar em um castelo de cartas. O impacto local às populações e à biodiversidade irá muito além da floresta. “Estamos na beira do precipício”, diz o cientista, uma das maiores autoridades no tema, resumindo o cenário atual. “Estamos vendo a savanização da Amazônia acontecer.”
Nobre cita dados que apontam o início do processo no Sul e Sudeste do bioma. A estação seca já está de três a quatro semanas mais longa, o que vai modificando a vegetação e a fauna. Em parte do norte de Mato Grosso e no sul do Pará, a floresta já não absorve carbono. Nesta região, a temperatura na estação seca é 3°C mais quente do que era na década de 80. Há um aumento da mortalidade de árvores típicas do clima úmido desde a Amazônia boliviana e peruana ao Sul da Amazônia brasileira e até o Amapá e a Guiana Francesa. Registros de lobos-guarás, animal símbolo do Cerrado, foram feitos dentro da floresta, um sinal de savanização da fauna.
“Se a savanização da floresta passar deste ponto de não retorno, aí não adianta nada”, diz Nobre. Nos anos 90 escreveu um célebre artigo científico sobre o que era, naquele momento, apenas uma hipótese. Se o desmatamento da Amazônia chegasse a 20% ou 25% da floresta, o limite em que a floresta consegue superar a agressão e se regenerar teria sido ultrapassado. “Temos que impedir isso. Temos que zerar o desmatamento em no máximo cinco anos. Zerar. Zerar. Zerar. E começar a restaurar pelo menos 300 mil km2.”
Nobre busca soluções e investidores. Desenvolve o projeto “Amazônia 4.0” para, a partir de laboratórios modernos, promover a bioeconomia da floresta.
A seguir trechos da entrevista que ele concedeu ao Valor:
Valor: O senhor levantou a hipótese da savanização da Amazônia há 30 anos, em um famoso artigo científico. Onde estamos?
Carlos Nobre: Hoje não é mais hipótese. Este artigo de 1990, da savanização da Amazônia, era uma hipótese. O desmatamento em 1990 era pequeno, mas se continuasse provocaria isso. Hoje estamos vendo a savanização da Amazônia acontecer.
Valor: Como isso se nota?
Nobre: Há muitas observações que mostram o processo, tanto nos vetores como nos impactos na biodiversidade, na vegetação e na temperatura. São sinais claros da savanização.
Valor: Quais são?
Nobre: Primeiro: a estação seca já está três a quatro semanas mais longa no Sul e Sudeste da Amazônia. Em áreas desmatadas já é quatro semanas mais longa do que era na década de 80. Isso em 40 anos.
Valor: Há outros sinais?
Nobre: Em áreas de pastagem, há uma menor reciclagem de água. Não só recicla menos, como a temperatura na pastagem é entre 1,5°C e 3°C mais quente. Outro estudo tem um dado preocupante.
Valor: Qual?
Nobre: Um estudo recente demonstrou que a própria floresta no Sul da Amazônia recicla menos água. Ou seja, está evaporando menos água. A floresta, em partes do Norte do Mato Grosso e no Sul do Pará, já não absorve carbono. Está perdendo a capacidade de absorver gás carbônico da atmosfera. Nesta região, a temperatura na estação seca é 3°C mais quente em comparação à década de 80.
Valor: Há outros sinais?
Nobre: O super hiperpreocupante é que estes efeitos todos, de uma estação seca mais longa, com menos chuva e mais quente é o aumento da mortalidade de árvores típicas do clima úmido. Essas árvores estão com uma taxa de mortalidade maior. Isso vai desde a Amazônia boliviana e peruana até o Sul da Amazônia brasileira e até o Sul da Amazônia brasileira e até o Amapá e a Guiana Francesa. É um dado muito preocupante. É um dado de savanização.
Valor: O que este dado mostra?
Nobre: Que a mortalidade nas árvores de clima úmido é maior do que as árvores que existem na Amazônia mas que existem também no Cerrado. Estas continuam com taxa de mortalidade normal porque já são naturalmente mais adaptadas a estações secas mais longas. Por isso que a savanização não é mais uma hipótese. No Sul da Amazônia, estamos muito próximos disso ocorrer.
Valor: Foram registradas imagens de lobo-guará na floresta.
Nobre: Sim. Em áreas degradadas já começa a ser visto o lobo-guará. É a savanização da fauna.
Valor: O processo de savanização então iniciou no Sul e Sudeste da Amazônia?
Nobre: Sim. Um início de savanização. Tem cientistas que acham que ali já é irreversível. Eu penso que não. Acho que se conseguirmos segurar o aquecimento global e restaurarmos a floresta em boa parte da área desmatada, plantarmos árvores, plantarmos floresta, o fenômeno pode ser revertido.
Valor: Quanto de área nesta franja já deveria ser reflorestado?
Nobre: Pelo menos entre 200 mil km2 a 300 mil km2. No Brasil já cortaram 814 mil km2 e tem pelo menos uns 300 mil degradados. Somando dá 1,1 milhão de km2 entre corte raso e área degradada. Pelo menos este 1,1 milhão de km2 tem que voltar a ser floresta muito rápido.
Valor: É muito alarmante.
Nobre: Estamos na beira do precipício. Se a savanização da floresta passa deste ponto de não-retorno, aí não adianta nada. A estação seca vai ficando mais longa e se passar de quatro meses de estação seca, o clima de equilíbrio é o de savana. A vegetação vira savana. Temos que impedir isso. Temos que zerar o desmatamento em no máximo cinco anos. Zerar. Zerar. Zerar. E começar a restaurar pelo menos 300 mil km2.
Valor: Dá para fazer parar o desmatamento imediatamente?
Nobre: É muito difícil cair de 11 mil km2 de desmatamento para zero no ano seguinte, mas dá. Nunca foi feito. Mas é assim que se evita o risco da savanização.
Valor: Qual o impacto deste processo que o senhor descreve?
Nobre: Significa que em 30-50 anos a floresta vira savana. Aí se cria uma situação em que toda aquela região ficará muito quente e prejudicial ao agronegócio. Irá liberar umas 300 bilhões de toneladas de CO2. Estamos falando de oito anos de emissões globais. Tornando muito difícil atingir as metas do Acordo de Paris.
Valor: Há impacto local e global.
Nobre: Ali na região, independente do aquecimento global, a savanização aumenta a temperatura local em 1,5 °C a 2,5°C.
Valor: E globalmente?
Nobre: Se perdermos a Amazônia, esquece conter o aquecimento global em 1,5°C. Mesmo que tivermos sucesso em reduzir rapidamente as emissões de gases-estufa, não irá adiantar.
Valor: Tudo está conectado. Perder a Amazônia irá rebater nos glaciares dos Andes, na água dos rios?
Nobre: Exatamente: vai derreter muito daquilo. Boa tarde da neve que cai nos Andes vem da umidade da Amazônia, as chuvas da bacia do rio Paraná também. Há grandes perdas.
Valor: O que pode acontecer com o agronegócio no Cerrado?
Nobre: Aumenta a temperatura do Cerrado e pode prejudicar o sistema de chuvas do Cerrado. O ar que chega no Cerrado será 2°C a 3°C mais quente. Ali já é quente e isso irá praticamente tornar inviável a produção agrícola e diminuir muito a produtividade da pecuária.
Valor: O que ocorre em termos de produção em 30-50 anos?
Nobre: Quando se soma aquecimento global com o risco de savanização praticamente fica inviável a produção de grãos no Norte do Cerrado.
Valor: Os governantes estão entendendo isso no Brasil? Quais os sinais políticos que o senhor vê?
Nobre: Vimos o mundo econômico internacional começar a influenciar a política no Congresso. A MP 910 caducou, era aquela que ia regularizar grande quantidade de áreas desmatadas ilegalmente. Há outras, que permitem, por exemplo, mineração em terras indígenas. Vamos dizer assim: vai haver uma nova tentativa de passar essas leis? Essa tentativa nunca desapareceu, só diminuiu. Como temos um Congresso como o atual, o risco de criar vetores que irão aumentar muito o desmatamento e a savanização estão presentes.
Valor: A pressão internacional tem efeito?
Nobre: Já havia um movimento global em sentido contrário. Com a eleição do presidente Joe Biden a política de combate à mudança climática se torna prioritária na agenda dos EUA e coloca a importância da Amazônia como sumidouro de carbono. O presidente Biden tem por desejo tornar os EUA liderança climática global. No documento que lançou há alguns dias, a Amazônia aparece neste contexto, de continuar sendo um sumidouro de carbono. Para isso tem que zerar o desmatamento e eliminar o risco da savanização.
Valor: O senhor lidera uma rede de cientistas, o Painel da Amazônia, que irá lançar em breve uma série de estudos sobre a Amazônia e fazer sugestão de políticas.
Nobre: Sim, sou um dos dois coordenadores do Painel. O relatório terá 33 capítulos. São 160 autores, a maioria cientistas. Há cinco lideranças indígenas e gente da iniciativa privada. Ao menos dois terços destes 160 autores são de países amazônicos e 46% são mulheres.
Valor: O senhor enxerga quais oportunidades de reverter este processo de deterioração da floresta?
Nobre: Finalmente começa a surgir um interesse mundial pelo mercado de carbono. De passar de projetos-piloto, de projetos da iniciativa privada para de fato criar um super mercado de carbono. Isso para ajudar países a reduzir o desmatamento e aumenta a restauração florestal. E ajudar também países como Suriname, Gabão, Costa Rica, aqueles que mantém a floresta. Ou Estados como o Amapá, por exemplo, que tem alto índice de floresta e tem que ser beneficiado por mantê-la em pé. Esse locais têm que ser beneficiados. Os mercados de carbono começam a criar volume. 2021 e 2022 são anos críticos para este mercado atingir ampla escala. Este processo, que era liderado pela Europa, vai ter um impulso agora muito grande com os Estados Unidos. Temos muita expectativa de que, de fato, surja um mercado global de carbono em grande escala.
Valor: Não pequenos projetos.
Nobre: Não estou falando de nada pequeno, que vaze o desmatamento para o lado. Estou falando de projetos de escala nacional e subnacional.
Valor: O governo Bolsonaro tem credibilidade para que alguém invista na floresta?
Nobre: O governo federal, não. Mas há iniciativas de projetos em jurisdição subnacional, de Estados amazônicos que queiram se candidatar a reduzir o desmatamento e aumentar a restauração florestal. Ou como o Amapá, que têm alto índice de floresta. Estes Estados todos poderão gerar créditos de carbono. Estamos falando de trazer centenas de milhões de dólares ao ano.
Valor: O seu projeto, o Amazônia 4.0, em que momento está?
Nobre: O Amazônia 4.0 é como se se fizesse um programa da Zona Franca Verde da Amazônia com produtos da floresta e descentralizado. É uma demonstração de que é possível colocar bioindústria na Amazônia para explorar produtos da biodiversidade. Assim que diminuir a pandemia, queremos colocar o primeiro laboratório na Amazônia, na cadeia do cupuaçu e do cacau. É uma biofábrica, pequena, supermoderna e móvel. Uma indústria 4.0.
Valor: Há recursos?
Nobre: Conseguimos recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para fazer a capacitação de comunidades de mulheres produtoras de cupuaçu, quilombolas, ribeirinhos e extrativistas no Pará. E vamos tentar atrair investimentos para construir as biofábricas de chocolate à base de cacau e cupuaçu. Já desenhamos os laboratórios de castanha-do-Brasil, de azeites finos de castanha, tucumã, buriti e patauá.
Valor: Há outros?
Nobre: Há um laboratório que estamos desenhando, de genômica. Será para se conseguir fazer o sequenciamento genômico de plantas, animais e até microorganismos da floresta. Queremos capacitar também populações indígenas para elas próprias fazerem o sequenciamento genético. Isso tem enorme potencial econômico no século 21. Temos recursos do BID e da filantropia, mas estou buscando recursos para estes laboratórios e para trazer investidores que possam financiar estas bioempresas.
Por Daniela Chiaretti
Fonte Valor