Pode até parecer irônico dizer que a pandemia provocada pelo Covid-19 trouxe alguns benefícios para o setor dos transportes coletivos urbanos de passageiros, particularmente no que diz respeito à percepção da importância e da essencialidade desse serviço público. O período da pós-pandemia, no entanto, deverá provocar a necessidade de uma revisão completa dos conceitos de planejamento, operação, gestão e remuneração das empresas operadoras, bem como da fixação de critérios totalmente novos para avaliar a qualidade dos serviços prestados e o grau de satisfação dos “clientes”.
Dentro desse contexto, a drástica queda na demanda de passageiros, com graves consequências para o equilíbrio econômico-financeiro dos sistemas de transporte por ônibus, provocou a interrupção da operação e a falência de muitas empresas, em várias cidades brasileiras. Num período de apenas seis meses foi possível verificar a vulnerabilidade e a fragilidade do setor que, nos últimos anos, vinha tentando sobreviver, num ambiente de tarifas que não cobriam os custos de produção dos serviços e de total desprezo e abandono por boa parte dos gestores públicos. Para a maioria deles, o transporte coletivo urbano é um “negócio”, regido por leis de mercado e realizado por empresários da iniciativa privada, que só pensam no lucro de suas empresas.
Dentre as várias lições aprendidas, uma questão muito particular chamou a atenção dos técnicos, gestores e dos próprios passageiros. Mesmo com uma demanda reduzida, que não ultrapassava 50% do carregamento verificado nos dias úteis, antes da pandemia, e com a utilização de mais de 90% dos veículos que compõem a frota operacional, houve excesso de lotação nos horários de pico. Como explicar essa discrepância entre a circulação de quase toda a frota operacional disponível e o excesso de lotação verificado em alguns horários?
Simples. Assim como ocorre em qualquer grande cidade do mundo, nos horários de pico, quaisquer sistemas de transporte coletivo urbano trabalham, invariavelmente, muito próximos dos seus limites da saturação. E, para desespero de muitos, a solução do problema não passa simplesmente por aumentar a quantidade de veículos em circulação.
A concentração de passageiros, num curto espaço de tempo, não deixa margem para grandes ajustes operacionais ou para um significativo aumento da oferta de lugares. O aumento da oferta, para atender a demanda nos picos da manhã e da tarde, quando a qualidade do serviço é mais percebida e criticada, depende de outros fatores além do aumento da frota em operação.
Para melhorar o nível da qualidade do serviço ofertado à população é preciso investir em infraestrutura (pista de rolamento, calçadas, pontos de parada, abrigos, estações de transferência etc.), em monitoramento da frota operacional, em sistemas de informações gerenciais, em treinamento dos operadores, fiscais e agentes de operação e em comunicação com os passageiros.
Se esses são os aspectos mais importantes para se oferecer transporte de melhor qualidade à população, em pleno ano eleitoral, é muito importante verificar como os candidatos a prefeito estão tratando o tema mobilidade nos seus respectivos programas de ação ou planos de governo.
Hoje, não há a menor dúvida que o transporte coletivo foi um dos setores mais impactados pela pandemia do Covid-19 e que o desequilíbrio entre oferta e demanda de passageiros deverá impor enormes desafios aos novos prefeitos eleitos. E, só para lembrar, soluções convencionais e tradicionais não resolverão problemas que se apresentam com enunciados completamente novos e diferentes daqueles com os quais os gestores estavam acostumados a lidar.
Com o propósito de melhor informar os candidatos e suas equipes técnicas, a Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP acaba de lançar um documento intitulado “GUIA ELEIÇÕES 2020 – COMO TER UM TRANSPORTE PÚBLICO EFICIENTE, BARATO E COM QUALIDADE NA SUA CIDADE” (http://files.antp.org.br/2020/9/28/guia-transporte-publico-nas-eleicoes-2020_web.pdf), contendo sugestões e propostas que podem ajudar muito na elaboração de um bom programa de governo.
O documento discorre, no nível de detalhe adequado, sobre a necessidade de um novo modelo de contratação dos serviços, a importância da infraestrutura para a prestação de um serviço de qualidade, a definição de fontes alternativas de recursos para custeio e financiamento das operações, a relevância da comunicação para se estabelecer canais de informação com os clientes e com os formadores de opinião, o estabelecimento de critérios de avaliação e padrões de qualidade dos serviços e a necessidade de absoluta transparência nas relações dos operadores com o poder público e com a própria população.
Mas, nem bem começaram as campanhas e vários candidatos a prefeito das principais cidades brasileiras já se dedicam a fazer promessas, quase sempre, descoladas da realidade ou mesmo das demandas da população. No afã de angariar votos, a maioria dos candidatos promete aumentar a frota operacional, ampliar o número de linhas, aumentar a quantidade de multas aplicadas aos operadores, regularizar o transporte clandestino, incrementar o transporte individual por aplicativos, rever ou cancelar contratos de concessão, reduzir tarifas e aumentar as gratuidades. Em resumo, quase tudo no sentido contrário ao que realmente precisa ser feito!
Não é necessário ser um especialista na área dos transportes para perceber que as promessas têm muito mais um sentido eleitoreiro e o objetivo de impactar o eleitor do que a intenção de se propor medidas ou ações que possam, de fato, melhorar a qualidade dos serviços prestados à população.
Se os candidatos e suas equipes técnicas pudessem se abster do momento eleitoral, certamente, estariam preocupados em elaborar programas de transportes que levassem em conta as reais necessidades do setor, bem como os novos atributos que serão considerados quando o passageiro tiver que optar entre o transporte coletivo e o individual, nos moldes do documento elaborado pela ANTP. No pós-pandemia, como já é sabido, os clientes estarão muito mais exigentes, particularmente, no que se refere ao preço, confiabilidade, regularidade e disponibilidade dos serviços.
Independentemente dos compromissos assumidos com a população, o futuro prefeito deverá transformar as promessas em propostas, definindo no seu plano de governo os recursos e as ações voltadas para os investimentos em infraestrutura, em inovação tecnológica, em gestão e controle dos serviços prestados, em treinamento dos agentes operacionais envolvidos e em comunicação – eficiente e eficaz – com os clientes.
Nunca é demais repetir que o transporte coletivo de passageiros é o serviço público que viabiliza os demais serviços e atividades essenciais à vida nas cidades e, quase sempre, um excelente parâmetro de avaliação da qualidade da gestão pública e da competência dos governantes, para tomar as decisões certas, nos momentos certos.
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(*) Francisco Christovam é presidente do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo – SPUrbanuss e, também, membro da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo – FETPESP, da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, do Conselho Diretor da Associação Nacional de Empresas de Transportes Urbanos – NTU, da Confederação Nacional dos Transportes – CNT e dos Conselhos Deliberativo e Consultivo do Instituto de Engenharia.
*Os artigos publicados com assinatura, não traduzem necessariamente a opinião do Instituto de Engenharia. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo