A Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, entidade que reúne os melhores técnicos do setor e que, há mais de 40 anos, luta por um transporte público de qualidade e por cidades com melhores condições de vida e habitabilidade, acaba de divulgar um “manifesto”, chamando a atenção para a real possibilidade de colapso dos atuais sistemas de transportes coletivos de passageiros, na maioria das cidades brasileiras.
O documento, singelo na apresentação e denso no conteúdo, faz um prognóstico com base na situação vigente e apresenta propostas muito realistas para “salvar” o que ainda restou dos atuais sistemas organizados de transportes coletivos e para retomar a prestação de um serviço essencial e estratégico, dentro de um novo contexto, já denominado por alguns de “novo normal”.
As sugestões apresentadas pela ANTP, em resumo, dizem respeito à obtenção de recursos para custear a prestação dos serviços e garantir investimentos em infraestrutura; à implantação imediata dos princípios e diretrizes contidos na Política Nacional de Mobilidade Urbana; ao incentivo ao desenvolvimento de serviços complementares aos sistemas de transportes coletivos existentes; à mudança do modelo de custeio da operação, por meio da criação de novas fontes de recursos extra tarifários (pedágio urbano, CIDE municipal, contribuição dos beneficiários, taxação de serviços correlatos etc.) e à alteração do modelo de contratação da prestação dos serviços, para garantir padrões de qualidade e eficiência na gestão dos contratos.
A Constituição Federal de 1988 estabelece, no seu artigo 6º, que o transporte é um direito social, à semelhança de outros serviços públicos, tais como: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia e segurança, entre outros. E, no artigo 30, diz que é competência dos municípios “organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”.
Com pleno conhecimento da situação financeira das empresas, o Governo Federal, por força do mencionado artigo 30 da Carta Magna, enfrentou e ainda está enfrentando dificuldades institucionais para viabilizar o repasse de recursos aos municípios, no sentido de garantir a continuidade da prestação dos serviços de transportes contratados. Seria complicado, para se dizer o mínimo, justificar recursos da União para pagar serviços contratados pelos municípios e prestados por empresas da iniciativa privada.
Como a arrecadação das empresas operadoras depende, quase que exclusivamente, da receita tarifária, com o pagamento das passagens pelos usuários, a drástica redução do número de passageiros pagantes gerou uma brusca queda da receita operacional, com forte impacto no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
Essa queda na demanda, provocada pelo afastamento, distanciamento ou isolamento social, impostos pela pandemia da COVID-19, e a situação financeira da maioria das empresas operadoras do transporte coletivo trouxeram à tona algumas questões de suma importância para a manutenção dos serviços contratados.
Por outro lado, a maioria dos prefeitos teve enorme dificuldade para lidar com o desequilíbrio entre oferta e demanda de passageiros e garantir a necessária remuneração das empresas, para cobrir os custos de produção dos serviços. Isso, para não falar dos alcaides que imaginaram ser possível garantir, ou mesmo prometer, transporte da população com “lotação de banco”, sem verificar a capacidade de lugares oferecidos pela atual frota operacional.
Os passageiros, por sua vez, se viram numa situação bastante delicada, ou seja, precisavam realizar seus deslocamentos diários para as mais diversas finalidades, sem, no entanto, se expor demasiadamente, compartilhando veículos com excesso de lotação, principalmente, nos horários de pico. E, quase sempre, tendo que ponderar e decidir entre as exigências sanitárias e as condicionantes próprias dos transportes coletivos.
Esse novo cenário impõe uma tomada de decisões pelas autoridades constituídas, pelos órgãos gestores, pelas próprias empresas operadoras e pela população urbana, que depende desse serviço público para realizar os seus deslocamentos diários, no sentido de se criar algo diferente de tudo o quê vem sendo praticado.
Assim, sem a pretensão de esgotar o tema e na mesma linha das sugestões apresentadas pela ANTP, cabe recomendar algumas ações imprescindíveis e possíveis de serem implantadas, a curto e médio prazos, a saber:
a) Adequar a legislação federal, para que a União possa participar dos investimentos necessários ao setor, principalmente na melhoria da infraestrutura – centros de controle operacional, terminais de integração, corredores, faixas exclusivas, estações de transferência, abrigos, entre outros – necessária à prestação de um serviço com qualidade;
b) Consolidar toda a legislação conexa e aplicável, incluída nos processos licitatórios para a contratação da prestação dos serviços de transporte, por meio da criação de um marco regulatório ou de um regulamento geral, com abrangência nacional;
c) Adotar modelos de contrato baseados na produção e na qualidade da oferta e não na quantidade de serviços, bem como flexibilizar o escopo e o objeto dos contratos de concessão, no sentido de permitir ao Poder Concedente adequar a oferta e o tipo de prestação de serviço de transportes – convencional, seletivo, compartilhado, sob demanda, por aplicativo – às reais necessidades de deslocamento da população;
d) Conscientizar as autoridades que o transporte coletivo é um dever do estado e um direito do cidadão e deve continuar sendo prestado por empresas privadas; porém, num regime de parceria, intensa colaboração e comprometimento entre o poder público e a iniciativa privada;
e) Compatibilizar os programas de melhoria e modernização dos transportes com os planos diretores de desenvolvimento urbano, visando democratizar o uso do espaço viário e assegurar faixa de domínio própria e exclusiva para o transporte coletivo;
f) Criar novas fontes de custeio da operação, incluindo o subsídio para grupos específicos de usuários, desonerando os passageiros comuns do pagamento da tarifa cheia e da parcela referente às gratuidades instituídas pelo Poder Público;
g) Eliminar, total ou parcialmente, os tributos incidentes sobre os recursos materiais – veículos, combustíveis, lubrificantes, pneus, câmeras – e sobre os recursos humanos, necessários à produção dos serviços;
h) Desenvolver modelos de comunicação, com vistas à promoção e valorização dos serviços prestados, à aproximação dos gestores e operadores com os clientes e à melhor informação aos formadores de opinião;
i) Capacitar toda a mão de obra utilizada na prestação dos serviços, com destaque para a difusão de conceitos de urbanidade e civilidade aos condutores e agentes operacionais; e
j) Reavaliar os modelos de negócio e aperfeiçoar os modelos de gestão e de governança empresarial das empresas prestadoras dos serviços de transportes coletivos.
Essas ações devem ser objeto das primeiras decisões a serem tomadas no período de pós-pandemia ou vistas como o ponto de partida para a retomada dos serviços de transportes coletivos, nesse novo ambiente de trabalho. E, nem é preciso esperar pelo encerramento das medidas restritivas, impostas pelas questões sanitárias.
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(*) Francisco Christovam é presidente do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo – SPUrbanuss e, também, membro da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo – FETPESP, da Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, do Conselho Diretor da Associação Nacional de Empresas de Transportes Urbanos – NTU, da Confederação Nacional dos Transportes – CNT e dos Conselhos Deliberativo e Consultivo do Instituto de Engenharia.
*Os artigos publicados com assinatura, não traduzem necessariamente a opinião do Instituto de Engenharia. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo