O caso Guandu e a incúria das autoridades

Por José Eduardo Cavalcanti*

Foto: Pixabay

Muito se tem falado e especulado ultimamente sobre a qualidade de água produzida pela Estação de Tratamento de Água do Guandu (ETA Guandu), a qual abastece a maior parte da população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

A ETA Guandu está no Guinness World Records – o livro dos Recordes, como a maior estação de tratamento de água potável do mundo em produção contínua. Desde a inauguração da primeira etapa, em agosto de 1955, com 4,5 m³/s, a ETA Guandu passou por sucessivas ampliações e melhorias técnicas que permitiram hoje fornecer uma vazão tratada de 45 m³/s suficientes para abastecer uma população de mais de nove milhões de pessoas na região metropolitana oeste do Rio de Janeiro.

O tratamento adotado é o convencional composto por coagulação, floculação, sedimentação, filtração, desinfecção, correção de pH, e ainda a fluoretação.

O manancial utilizado é o rio Guandu que originalmente tinha uma vazão muito pequena, cerca de 11 m³/s, que inviabilizava qualquer alternativa de abastecimento de água, de grande porte, para o Rio de Janeiro. Em 1952, com o objetivo de geração de energia, foi iniciada a transposição das águas do rio Paraíba do Sul e do rio Piraí para a bacia do rio Guandu, acrescentando 150m³/s e elevando sobremaneira a sua vazão.

O rio Guandu drena uma bacia com área de 1.385 km² e é formado pelo rio Ribeirão das Lages, passando a se chamar rio Guandu a partir da confluência com o rio Santana. Seus principais afluentes são os rios: dos Macacos, Santana, São Pedro, Poços/Queimados e Cabuçu/Ipiranga. O seu curso final retificado leva o nome de canal do São Francisco. Todo seu percurso, até a foz, totaliza 48 km. A captação de água para tratamento na ETA Guandu é realizada no município de Nova Iguaçu.

Na década de 60, com as ampliações para 13,5 m3/s, foi construída uma nova captação de água para a ETA Guandu. Esta captação, para 40 m3/s, é composta por uma barragem flutuante; pré-desarenador com duas comportas de purga; tomada d’água por gravidade e gradeamento; túnel canal para escoamento da água; quatro desarenadores e elevatória de baixo recalque (BRG) conduzindo água para a ETA Guandu.

Para a construção da captação da água para a ETA Guandu e da Barragem Principal houve a necessidade de realizar uma derivação das águas do rio Guandu através da construção de um braço secundário do rio e da Barragem Auxiliar (três comportas), vertendo água apenas do rio Guandu. A Barragem Principal (sete comportas), com orientador de sólidos flutuantes, pré-desarenador, mais o canal de purga (duas comportas), com fluxo de água, por gravidade, para a Tomada D’água e para a própria Barragem Principal, verte água do rio Guandu, mais os seus afluentes: rio Queimados (Poços/Queimados) e rio Ipiranga (Cabuçu/Ipiranga).

Como a área de 100 metros à montante da Tomada D’água ao redor do rio Queimados – onde ele recebe como afluente o rio Ipiranga – era uma “zona úmida”, parte da planície de inundação desses rios, com o fechamento das barragens, deu origem ao aparecimento da Lagoa Guandu (artificial), que recebe as águas dos rios Poços/Queimados e Cabuçu/Ipiranga, e mais as águas do próprio rio Guandu. Desta forma, ocorre uma dinâmica de entrada e saída de água desta Lagoa, ao longo do tempo. Tal dinâmica é dada pelo aumento do fluxo de água do rio Guandu ou pelo aumento do fluxo de água dos rios que aportam à Lagoa. A manutenção do nível constante a montante da Tomada D’água é realizada pela operação das comportas das Barragens Auxiliar e Principal.

Em 1994, com a ampliação dos 7 m3/s da ETA Guandu, já chegando aos seus 45 m3/s, houve a necessidade de duplicar a captação de água, com novo túnel canal, desarenadores, elevatória de Baixo Recalque e adutora de 2500 mm, para transporte de água até a ETA Guandu. Essa duplicação permitiu que toda essa estrutura de captação, a partir de um canal de derivação, venha a ser utilizada para alimentar a ETA Novo Guandu, que será construída próximo ao BRG.

Entretanto, ocorre que as águas dos rios Poços/Queimados e Cabuçu/Ipiranga, – muito poluídas –, deságuam na Lagoa do Guandu localizada a poucos metros da captação da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) prejudicando a qualidade das águas captadas para tratamento.

Esses rios são apontados como poluidores da Lagoa do Guandu, situada junto à tomada d’água. Foi ali que, no período do réveillon, uma proliferação de algas cianobactérias acima do normal deu início à crise da água: elas produziram uma grande quantidade de geosmina (substância orgânica com gosto de terra e cheiro forte) que passou pelo sistema de tratamento da ETA Guandu.

Imediatamente, choveram reclamações por parte dos consumidores acerca da qualidade da água tratada, fornecida pela CEDAE, com questionamentos sobre gosto e odor acentuados e alta turbidez na água.

A CEDAE, como proprietária e responsável pela operação da ETA Guandu, foi apontada pela mídia e pela população de vários bairros – onde os efeitos foram sentidos – como a culpada por aquele estado, principalmente porque não se pronunciava oficialmente a respeito.

Pesaram neste entendimento o fato de meses antes aquela Companhia ter demitido de seu quadro 54 empregados, sendo a maior parte constituída de engenheiros entre 25 e 45 anos de experiência, além de o governo estadual pretender implantar um Programa de Demissão Voluntária (PDV), isso sem falar na possibilidade de privatização da empresa, cujas ações foram colocadas como contragarantia de empréstimo de R$ 2,9 bilhões feito pelo BNP Paribas ao Governo do Estado do Rio e não à CEDAE.

Inúmeras versões emergiram tentando explicar o fenômeno ocorrido, surgindo, em consequência, várias informações desencontradas, além de “fakes”, perpetradas pela mídia, redes sociais e até pelas autoridades do Governo do Estado, legalmente responsáveis pela solução do problema – incluindo o presidente da CEDAE e a figura do próprio Governador que, irresponsavelmente, desacreditaram os técnicos responsáveis pela operação da ETA Guandu, afastando-os de suas funções.

A mídia tradicional, em grande maioria alimentada por informações de “pseudotécnicos” e dos costumeiros ambientalistas de plantão, contribuiu para a desinformação. Já as redes sociais divulgavam inúmeras “fakes” alarmando mais ainda a população. Acresce-se a isto a exploração política, ideológica e corporativista vinda de todos os lados acerca da questão envolvendo a privatização da CEDAE.

Enquanto isso, as associações que congregam os técnicos do setor se omitiram com receio de que seus membros, muitos deles funcionários públicos ou fornecedores de insumos, sofressem represálias. Aliás, diga-se de passagem, isto explica o fato da imprensa se servir muitas vezes de leigos para ajudar a compor suas matérias pseudamente de cunho técnico, o que de fato tem acontecido neste episódio.

Mas o que de fato aconteceu?

A ETA Guandu mantinha um Plano Operacional de Contingenciamento, disponibilizado pelo Comitê Guandu para o caso da ocorrência de floração de algas cianofíceas na lagoa: Seria a interrupção da captação por algumas horas suficiente para que estas algas fossem removidas da Lagoa Guandu. Para tanto, seriam abertas comportas das Barragens Auxiliar e Principal, segundo protocolo operacional que vinha sendo adotado desde 1997. Entretanto, o alto escalão da CEDAE proibiu a adoção de tal procedimento, e ainda afastou o chefe da ETA.

Em consequência deste ato, a captação não sofreu solução de continuidade e a água com geosmina (nome derivado do grego significando “cheiro de terra”), acabou assomando à ETA Guandu, causando percepção de gosto e odor de terra na água tratada.

Contudo, em nenhum momento a ETA produziu água com turbidez fora dos padrões de potabilidade, mesmo sem o carvão ativado dosado apressadamente na entrada da ETA junto ao floculante. Os casos de água turva apontados pela mídia e redes sociais eram decorrentes provavelmente de canalizações incrustadas nos ramais prediais ou caixas d’água sujas, uma vez que a garantia de potabilidade só alcança até o ramal predial excluindo-se, portanto, os trechos a jusante, sobretudo “gatos”.

Mas como o problema ainda persistia, era necessário implementar aquele protocolo, o que acabou sendo feito tardiamente e sem muita transparência o que ensejou inúmeras outras versões, incluindo até teorias conspiratórias, tendo o Governador levantado a suspeição de sabotagem e pedindo investigação do caso. Caberia ao mesmo, agora, vir a público divulgar o resultado dessa investigação e não tendo havido sabotagem, como é o mais provável, tornar claro a inocência dos empregados da CEDAE.

Este episódio demonstrou a absoluta falta de liderança exercida por quem o possui de direito, abrindo caminho para manifestações e intervenções de pessoas e entidades alheias ao problema, incluindo até mesmo a Polícia Civil. A diretoria da CEDAE, principalmente seu presidente, falhou lamentavelmente nesta missão, acabando por ser demitido.

O mesmo não aconteceu com os operadores da ETA Guandu que, apesar de desfalcados de seus melhores quadros, uma vez que foram demitidos sem justificativas, e, pressionados por todos os lados, se superaram para a resolução daquela inconformidade.

Não obstante, as entidades do setor se limitaram a discutir o problema apenas intramuros, abstendo-se de qualquer manifestação oficial, seja para as autoridades constituídas, seja para a população através da mídia tradicional por receio de se exporem.

A população, refém do problema, desinformada e abandonada, tendo de consumir águas minerais a preços exorbitantes, incluindo as de procedência duvidosa, teve de suportar inerte a incúria das autoridades pretensamente (ir)responsáveis.

E a CEDAE sai deste episódio chamuscada por culpa exclusivamente de sua direção.

(O autor agradece a colaboração dos engenheiros Adriano Gama e Flávio de Carvalho)

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*JOSÉ EDUARDO W. DE A.  CAVALCANTI

É engenheiro consultor, diretor do Departamento de Engenharia da Ambiental do Brasil, diretor da Divisão de Saneamento do Deinfra – Departamento de Infraestrutura da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), conselheiro do Instituto de Engenharia, e membro da Comissão Editorial da Revista Engenharia

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*Os artigos publicados com assinatura, não traduzem necessariamente a opinião do Instituto de Engenharia. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo