A cosmóloga Flávia Sobreira, professora do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp, é um dos dois brasileiros que participam do projeto do DESI (sigla em inglês para Instrumento Espectroscópico de Energia Escura), com o objetivo de investigar um dos maiores mistérios da astrofísica e da cosmologia: a energia escura, que compõe quase 70% do universo e é responsável por sua expansão acelerada. Instalado na cúpula do telescópio Mayal, no Observatório Nacional Kitt Peak (Arizona, EUA), o DESI é dotado de 5.000 “olhos” robóticos para mapear a distância entre a Terra e 35 milhões de galáxias, durante cinco anos. Em 22 de outubro, o telescópio forneceu a primeira imagem de galáxias distantes, marcando o trabalho de uma década de aproximadamente 500 pesquisadores de 75 instituições em 13 países.
Flávia Sobreira participa deste grande mapeamento do universo por meio do LIneA – Laboratório Interinstitucional de e-Astronomia, criado em 2010 com a missão de estimular e coordenar a participação de pesquisadores brasileiros nestes consórcios internacionais para estudos em astrofísica e cosmologia. O laboratório é financiado em grande parte pelo INCT e-Universo (um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia do governo federal), que pretende se basear na experiência acumulada e na infraestrutura disponibilizada pelo LIneA para formar uma nova geração de pesquisadores adaptados a esta nova realidade.
“O LIneA funciona como um laboratório que não está ligado a nenhuma instituição, oferecendo a brasileiros uma infraestrutura para esses experimentos. Participar de um projeto como o DESI é muito custoso, pagando-se uma taxa em torno de 300 mil dólares por pesquisador, que não temos como bancar”, explica a professora do Departamento de Raios Cósmicos da Unicamp. “Há cosmólogos espalhados por várias universidades do Brasil e que o LIneA fez foi juntar todos os interessados como uma instituição, servindo de elo com os consórcios para esses grandes mapeamentos.”
Segundo Flávia Sobreira, sabe-se desde 1998 que o universo está em expansão acelerada, descoberta que rendeu o prêmio Nobel de Física de 2011 aos cosmólogos americanos Saul Permutter e Adam Riess e ao australiano-americano Brian Schmidt. “A descoberta mudou o olhar da cosmologia, já que os cientistas não esperavam por isso. A partir dali criou-se uma força-tarefa para tentar entender o que faz o universo se expandir desta forma acelerada. Vários telescópios foram construídos e o avanço tecnológico tem melhorado bastante a precisão de nossos dados.”
A professora do IFGW explica que a cosmologia é uma área da astronomia que estuda a origem, estrutura e evolução do universo, ocupando-se amplamente, por exemplo, da teoria do Big Bang. “Temos o espaço-tempo e, ali, a matéria, que de acordo com a lei da gravitação, só atrai; não há repulsão de matéria. Mas imagine um monte de corpos que estão se afastando uns dos outros porque o universo está se expandindo e, como a velocidade não é constante, ele aumenta de tamanho cada vez mais e de forma acelerada. Isso vai contra o que sabemos sobre a atração da gravidade.”
Modelo cosmológico
Para tentar explicar o fenômeno, acrescenta Flávia, adicionou-se ao modelo cosmológico a energia escura, devido à crença de que ela compõe cerca de 70% da densidade de energia do universo e funciona como uma antigravidade fazendo o cosmo se expandir. “Trata-se do modelo Lambda-CDM, que queremos testar e verificar. Nada sabemos sobre a energia escura [o que é, como é formada, de onde surgiu] e nunca será possível observá-la diretamente; com o modelo procuramos testá-la indiretamente. É uma análise estatística, matemática: criamos um modelo de como pensamos o funcionamento do universo, com dados que são testados mediante a observação; se o modelo consegue explicar o que você vê, podemos começar a acreditar nele.”
A professora observa que, diferentemente da astronomia, a cosmologia não está interessada no que está dentro da nossa galáxia e sim em mapear o universo. “Estudamos a distribuição dos milhões de pontinhos registrados pelo telescópio, que são galáxias em meio a milhões de outras estrelas (que precisamos saber separar). É um trabalho impossível de realizar sozinho. O que justifica a construção desses telescópios é que existe um grupo muito grande de pesquisadores, cada um com uma tarefa específica no desenvolvimento da ciência; a conclusão é a junção dos resultados obtidos por todo o grupo.”
Para oferecer uma ideia da imensidão de dados, a cosmóloga da Unicamp lembra que quando iniciou suas pesquisas pelo LIneA, o telescópio Sloan Digital Sky Survey (SDSS) permitia observar por volta de 1 milhão de galáxias; o Dark Energy Survey (DES), 300 milhões; e com outro em construção, Large Synoptic Survey Telescope (LSST), será possível observar 34 bilhões de objetos. “O avanço tecnológico na cosmologia tem sido aplicado de forma intensa em benefício da sociedade. As câmeras fotográficas atuais, por exemplo, surgiram devido ao interesse em construir detectores mais precisos – usamos essas mesmas câmeras com tecnologia CCD (sigla em inglês de dispositivo de carga acoplada) para fotografar o universo.”
Sem poluição luminosa
Flávia Sobreira ressalta que os telescópios são colocados sempre em regiões montanhosas, onde o céu é muito limpo devido à ausência da poluição luminosa das cidades – o DESI está em um observatório a 2.000 metros de altitude, na montanha Kitt Peak, deserto de Sonora, EUA. “Antigamente os astrônomos é que comandavam a câmera para onde queriam observar, enquanto esse novo telescópio opera automaticamente, estando programado para varrer determinada área do céu. Estudar como as galáxias estão ali distribuídas nos traz muita informação.”
Conforme a pesquisadora, também é preciso ficar alerta para o surgimento de objetos indesejáveis, como um satélite que vai aparecer na imagem como uma linha brilhante. “Fazemos ciência, mas também tem uma parte bonita. Certa vez, estávamos apontando a câmera do Dark Energy Survey [localizado no Cerro Tololo Interamerican Observatory, no Chile] para a área planejada e surgiu um cometa, que não era de interesse científico para estudos sobre energia escura, mas tiramos uma foto maravilhosa.”
Para este mesmo telescópio no Chile, recorda a cosmóloga do IFGW, a colaboração propôs construir uma câmera bastante poderosa em troca de usá-la para observações durante cinco anos, período que acabou estendido por mais um ano. “É uma supercâmera, que utilizávamos na melhor metade de cada ano, liberando-a nos demais semestres para trabalhos mais pontuais, como de alguém interessado em observar um planeta novo – nosso interesse é diferente, pois queremos fazer um mapa de certa área do universo e precisamos de um bom tempo de observação. Acabou nosso tempo e a câmera lá permanece, agora liberada para a sociedade, que acaba beneficiada pela tecnologia criada para esses equipamentos.”
Desde o Big Bang
Flávia Sobreira trabalha especificamente com Oscilações Acústicas Bariônicas, em que uma das análises envolve a fase primordial do universo, surgido na “explosão” chamada Big Bang. “Depois disso, o universo sofreu uma expansão em ritmo vertiginoso – a inflação, entrando em seguida na fase quando era dominado basicamente por fótons – partículas relativísticas que estavam fortemente acoplados à matéria. Ocorre que o universo continuou se expandindo e foi esfriando, até atingir uma temperatura em que os fótons começaram a se desacoplar da matéria bariônica.”
A pesquisadora atenta que esta fase foi muito importante, visto que a pressão dos fótons tentando fazer com que a matéria se afastasse, resultou em ondas sonoras que se propagaram pelo espaço e ficaram congeladas. “Os fótons livres se desacoplaram quando o universo tinha apenas 400 mil anos (hoje tem cerca de 14 bilhões de anos), sendo que as galáxias se formaram muito tempo depois. Como as ondas sonoras ficaram “congeladas” neste momento do desacoplamento radiação-matéria, quando estudamos a distribuição e o grau de aglomeração de galáxias usando ferramentas estatísticas, encontramos uma assinatura que permite inferir a taxa de crescimento do universo.
Esta primeira imagem obtida pelo DESI serve para verificar o desempenho do instrumento e fazer ajustes necessários para a obtenção “em escala industrial” das imagens que farão parte de um levantamento cobrindo uma vasta região do céu. Ela é pequena demais para a quantidade de galáxias que Flávia Sobreira costuma observar, sendo que a pesquisadora junta várias delas para identificar a posição de cada galáxia e criar um catálogo repleto de informações, como posição e brilho. “O fato é que em minhas análises não vejo as imagens, apenas um conjunto de dados que me permitem fazer, entre muitas outras coisas, a função de correlação. Esta primeira imagem, na verdade, nada significa em termos de ciência. Mas quando se constrói uma câmera durante anos e se tira a primeira foto, é um símbolo, um marco para uma análise estatística de dados bem feita que vai permitir muitas conclusões de como o universo funciona.”
Fonte Jornal da Unicamp