Em um cenário de incertezas macroeconômicas e de enorme déficit nas contas públicas, as privatizações se tornaram um capitulo essencial na cartilha de recuperação do País, definida pela equipe do governo do presidente Jair Bolsonaro. A redução da obesidade do Estado é uma peça-chave para restaurar o crescimento — e uma forma de fazer voltar a girar a roda da infraestrutura, com aeroportos, portos, rodovias e ferrovias melhores. A aposta está em curso na política de concessões de quase 300 ativos da União, uma espécie de Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) da atual administração federal. O pacote executado pelo Ministério da Infraestrutura projeta investimentos da ordem de R$ 231 bilhões até 2022. A projeção é de R$ 150 bilhões somente neste ano em aportes da iniciativa privada nos ativos públicos que serão ofertados ao mercado.
Neste contexto, a saída para o crescimento passa, principalmente, pelo mar. Entre os ativos que a União pretende privatizar está a empresa Santos Port Authority (SPA), antiga Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp) e responsável pela administração do Porto de Santos. Ela é vista como a “cereja do bolo” do programa de concessões. Para o governo federal, a companhia integra o grupo de “grandes oportunidades” entre os ativos que serão ofertados ao mercado.
E não é gratuita essa percepção de que no caminho das águas até Santos está um patrimônio que pode alavancar e muito a economia do País, desde que a empresa siga a direção dos sólidos resultados financeiros e de eficiência na gestão. O maior complexo portuário da América Latina, responsável pela movimentação de cerca de um terço da balança comercial brasileira, vem se preparando para sair da condição de grande para se tornar gigante, tanto em movimentação quanto em eficiência. Com isso, quer fazer com que passem pelos terminais de Santos nada menos que 40% da balança comercial do Brasil. O plano inclui deixar a casa arrumada para mudar de dono antes da disputa presidencial de 2022.
Os números mostram a grandiosidade do cais: em 2019, segundo dados preliminares da SPA, foram movimentadas 134 milhões de toneladas. A alta, em carga, foi de apenas 0,63% em relação a 2018, mas o resultado financeiro é bem melhor. Somente de contêineres foram transportados 4.164.578 TEU (medida equivalente a um contêiner de 20 pés). A companhia saiu de um prejuízo de R$ 468,7 milhões, em 2018, para um lucro líquido registrado, até novembro de 2019, de R$ 140,5 milhões, o melhor resultado desde 2013. A margem Ebitda saltou de 28,26%, em 2018, para 46,87% no ano seguinte. E pode muito mais. Uma das apostas é ganhar mercado com movimentação de produtos que deixaram de vir para Santos por problemas logísticos e de eficiência — o foco para tornar a empresa mais atrativa e, por consequência, mais rentável.
O timão desse navio está nas mãos do engenheiro naval Casemiro Tércio Carvalho, que há um ano assumiu o comando da administração do Porto de Santos e que esteve à frente do Porto de São Sebastião (administrado pelo governo estadual). Aliás, desafio não é novidade para o também alpinista, que já se aventurou em picos do Alasca e ficou perto de escalar o Everest, e que se aventura também na cozinha como criador de pratos de seu restaurante, em São Paulo. “A meta é privatizar a empresa em 2021. Preparar a casa para a iniciativa privada, que é o que estamos fazendo, significa melhorar a companhia. Se eu entregar uma empresa quebrada, ninguém vai pagar nada por ela. Reduzir custo, melhorar a receita, enxugar e torná-la mais eficiente eu faço com que o setor privado tenha muito mais apetite pela compra”, afirma o executivo.
Segundo ele, 2019 serviu para colocar a casa em ordem, mas a grande transformação acontecerá neste ano, que contará com novo plano de contas, análise de risco e balanço auditado por empresa de nível internacional. “Além disso, temos que fechar o valuation da empresa, que hoje só de imobiliário vai de R$ 8 bilhões a R$ 10 bilhões. E vamos melhorar o fluxo de caixa. Vamos privatizar o CNPJ da autoridade portuária, a privatização clássica, para chegar ao faturamento bruto de R$ 1,5 bilhão em 2021. Em 2018, esse número foi de R$ 1,02 bilhão”, afirma Carvalho.
Neste novo cenário, o Porto de Santos projeta investimentos, em até 10 anos e com aporte da iniciativa privada, de R$ 8,6 bilhões, divididos em R$ 6,3 bilhões em expansão de novos terminais e concessões de novos terminais. Outros R$ 2,3 bilhões serão investidos para melhorar os acessos terrestres (ferroviário e rodoviário). Além disso, o planejamento da SPA é de incluir no plano de privatização a obra de um túnel para ligar as duas margens do cais, entre Santos e Guarujá, que custaria R$ 2,5 bilhões, a partir de um projeto já apresentado pela Dersa (que teve projeto de extinção aprovado no ano passado pela Assembleia Legislativa) e que já conta até com licenças ambientais. Somados, os projetos têm potencial de garantir investimentos de R$ 11,1 bilhões em melhorias que irão beneficiar o complexo portuário.
EFICIÊNCIA A eficiência da gestão do porto em si é outro ponto que a nova gestão da autoridade portuária se debruça. Até porque ser mais eficiente significa ser mais competitivo no mercado global. “Por ano, são cerca de 5 mil navios. E quando um navio está atracado e precisa desatracar para outro entrar, a operação está sendo ineficiente. Estamos mudando as regras do Porto para que o navio opere com a máxima eficiência. Quando eu assumi, a regra era: desatraca. O que estou mudando é que se ele não estiver operando de forma ineficiente, o período seguinte vou duplicar e depois quadruplicar o preço pelo serviço”, afirma o presidente da SPA. “Vou forçá-lo a ser eficiente doendo no bolso. E quanto mais eu movimento carga, menor é o preço por unidade transportada. E tudo isso precisa ser feito, além de rápido e no melhor preço, sem causar avaria, e de todos os tipos, desde molhar um carregamento de trigo, azedar um carregamento de suco de laranja, ou arranhar um carro. E tudo isso nos habilita a buscar ser o maior e melhor porto do Brasil.” A meta, ousada, é criar condições para que Santos se transforme em um hub portuário, com a habilitação para navios maiores, de até 366 metros.
O consultor portuário e presidente da Federação Nacional das Operações Portuárias (Fenop), Sérgio Aquino, aposta no aumento físico do complexo portuário como um dos caminhos para o crescimento. “O Porto de Santos ainda tem projeções de expansão e continua dando respostas às necessidades mercadológicas do comércio exterior do Brasil e único competitivo em qualquer modalidade de carga. E o planejamento deve ser em ampliação de pontos de atracação, já que a tendência das cargas é de maior fluidez nas cargas. E Santos tem capacidade para isso”, diz Aquino, que defende investimentos em infraestrutura em outros portos para o crescimento mais sólido também de Santos.”É importante, por exemplo, o crescimento do Arco-Norte para exportações de grãos para que o setor não fique tão dependente de Santos e Paranaguá. É positivo para o Brasil o crescimento do próprio setor portuário. Quantos mais opções logísticas, mais competitividade para o comércio exterior”, analisa.
O vice-presidente da Ocean Network Express, sexta maior companhia de transporte de contêineres do mundo, Gilberto Santos, vê também na eficiência o caminho para o desenvolvimento. “Ter uma autoridade portuária mais eficiente é fundamental para o setor, desde que essa filosofia também seja transferida a outros órgãos que envolvem a cadeia, como Receita Federal, Marinha, Anvisa, entre outros. Se essa roda funcionar melhor, o Brasil pode crescer mais”, analisa o dirigente, que também aponta na melhoria da eficiência dos serviços de dragagem outro caminho que deve ser traçado. “Saímos do modelo de um país exportador de produtos acabados, posto hoje da China, para exportar commodities. Qualquer custo tem impacto grande nessa cadeia”, diz o executivo da empresa, que hoje ocupa o sexto lugar entre os armadores no mundo.
GESTÃO Mesmo com fatores que estão além da gestão da autoridade portuária, como o próprio olhar atento do mercado para o cais santista, Tércio Carvalho acredita no salto significativo dos já consolidados 30% da movimentação da economia pelos navios que atracam em Santos. Mas para que esses planos se concretizem é preciso superar outra barreira, que é do gargalo logístico, um dos fatores no chamado Custo Brasil. Perder tempo para desembarcar mercadoria, esperar para nova carga, significa menos receita. E, na ponta do lápis, isso pode significar perda de espaço. Tanto que, em dois episódios recentes, a cidade e o próprio porto sentiram o reflexo negativo da falta de opções de acesso aos terminais.
Em abril de 2015, um incêndio em tanques de gasolina e álcool da empresa Ultracargo, que durou nove dias e que fica bem no caminho por onde as cargas são escoadas, travou o cais e a saída encontrada foi criar uma fila, em horários alternativos, para que os caminhões chegassem à área portuária por dentro de Santos. Em maio de 2018, caminhoneiros, em greve, impediram o acesso ao porto durante 11 dias, só resolvido após reuniões entre representantes dos trabalhadores e o então governador Márcio França.
Para diminuir parte do problema, Prefeitura de Santos e o governo do Estado, por meio da concessionária Ecovias, com investimentos da ordem de 570 milhões — R$ 270 milhões pelo Estado e R$ 300 milhões pelo governo municipal – têm realizado obras em melhorias de acesso ao Porto, no fim da Rodovia Anchieta e na entrada da cidade, para permitir mais fluidez do tráfego. Segundo a concessionária, a separação do tráfego de acesso à cidade e ao Porto se dá a partir do km 61 da estrada, em Cubatão. A partir dali, os veículos que seguem para o Porto ficarão na pista marginal, enquanto os que têm como destino a cidade de Santos irão pela pista expressa. A contrapartida para a Ecovias foi a extensão, em sete meses e 24 dias, da concessão do Sistema Anchieta-Imigrantes, que agora termina em junho de 2026.
“É inadmissível que o maior porto do Brasil tenha apenas uma rota para sua movimentação” Paulo Alexandre Barbosa, Prefeito de Santos.
A fatia da obra que compete ao governo federal ainda está em estudos, o que tem gerado críticas. Para o prefeito de Santos, Paulo Alexandre Barbosa, a demora na obra por parte da União diminui o impacto positivo da etapa que está em fase de execução do projeto Nova Entrada da cidade. “É inadmissível que o maior porto do Brasil tenha apenas uma rota para sua movimentação. São cerca de 10 mil caminhões que passam pela entrada de Santos diariamente e há o impacto no cotidiano da Cidade devido à movimentação diária”, diz.
Em 2013, um convênio foi assinado entre Prefeitura, Estado e União para a realização dos projetos. O objetivo era, de forma conjunta, realizar as intervenções, estimadas em R$ 900 milhões. Nesta divisão, a Prefeitura ficaria responsável por executar as obras de trânsito local, o estado com as obras de chegada a cidade e a União com as obras de acesso ao Porto. Fizemos o projeto de uma forma que quando fossem realizadas as entregas, elas tivessem a sua funcionalidade, sem a necessidade de complementação das obras. “A União, infelizmente, não fez a parte dela”, afirma Barbosa. O presidente da SPA argumenta que não há como utilizar recursos públicos para viabilizar esse ramal rodoviário e que obra deverá ser feita após a privatização, pelo novo comando da autoridade portuária de Santos.
Outro ponto importante nesse processo de mudança de gestão e de internacionalização da marca é mudança do nome Codesp para Santos Port Authority, para poder ‘vender’ melhor a marca Porto de Santos. Mudar de nome também foi uma forma de tentar superar a péssima imagem instalada no País e no mundo com a prisão do então presidente da companhia José Alex Oliva, em 2018, pela Polícia Federal. “É um rompimento com o passado para passar a ser uma empresa moderna, internacional, em que nossa comunicação seja global. O nome internacional de muitos portos é em inglês”, diz o presidente da SPA. “Essa mudança acompanha a nova gestão e em conjunto com ações internacionais arrojadas. Estamos trazendo para Santos, e será a primeira vez no Brasil, o Congresso da Associação Americana de Portos em 2021.”
Carvalho não teme em reconhecer que o cronograma eleitoral pode ser um complicador nas pretensões de um rito absolutamente isento, à medida que a conclusão do processo se aproximar do momento da abertura das urnas para a escolha do presidente que irá governar entre 2023 e 2026. Não é à toa que as cotoveladas públicas entre Bolsonaro e o governador João Doria sobre modelo e rito da privatização do Porto podem ter como pano de fundo a disputa pelo comando do Palácio do Planalto. E quanto mais longe a discussão técnica do início da campanha, melhor. “Por isso estamos trabalhando para 2021. Se a privatização avançar, ela vai ser contaminada pela corrida presidencial.”
Historicamente, o comando da então Codesp sempre esteve no balaio de negociações políticas, em uma espécie de toma-lá-dá-cá, com vagas em diretorias indicadas por partidos em troca de apoio político. Os últimos – e por bastante tempo – donos foram MDB e PT. E ele garante que hoje o cenário é outro. “O que estamos fazendo só é possível porque o ministro Tarcísio, da Infraestrutura, nos protege politicamente. Cada diretoria era de um partido. Existiam cinco empresas na mesma empresa. Hoje tem uma diretriz só. E sem partido. O único partido que tem aqui hoje é o ‘Partido Portuário’.” Sem dono político fica mais fácil e até mais atraente para convencer o investidor privado a tomar conta da administração do maior porto da América Latina e preencher também os cofres públicos na hora da batida do martelo.
“A gente quer não só ser o maior, mas também o melhor”
O presidente da Santos Port Authority (SPA) afirma estar focado em eficiência de gestão e prepara a empresa para a privatização, que deve acontecer no ano que vem. Acompanhe a entrevista:
O Porto de Santos está pronto para deixar de ser grande e se tornar gigante?
A gente quer não só ser o maior, mas também o melhor. Desse um terço da balança comercial brasileira que Santos movimenta, 60% é China; 30%, Estados Unidos e 10%, União Europeia e América do Sul. Isso mostra que nessa guerra comercial entre Estados Unidos e China, o Brasil tem um papel fundamental. Santos é um instrumento de gestão de comércio exterior do País. Ser o melhor está presente no tripé preço, tempo e avaria. Uma boa operação é o contêiner já chegar e embarcar, é a soja chegar aqui e a já ser despachada, ou seja, o tempo de operação. E falo de todos os tempos: de chegada de uma composição ferroviária, de espera de um caminhão, de carregamento, de armazenamento. Como eu encurto esse tempo? Com eficiência. E que no final vai significar dinheiro, porque se eu rodo mais carga por ano, eu faço mais dinheiro. E para movimentar mais navios por dia, damos mais inteligência à gestão do canal. Estamos desenvolvendo um algoritmo de sequenciamento de navio para justamente entrar mais navios. E quanto mais eu movimento carga, menor é o preço por unidade transportada. E tudo isso precisa ser feito, além de rápido e no melhor preço, sem causar avaria, e de todos os tipos, desde molhar um carregamento de trigo, azedar um carregamento de suco de laranja, ou arranhar um carro. E tudo isso nos habilita a buscar ser o maior e melhor porto do Brasil. Fazer isso significa habilitar Santos para ser, além de um gateway, ser um hub de fato, ser um concentrador de carga.
E o que falta para Santos ser hub?
É um movimento que não depende só da gente, depende também do mercado. Nós estamos habilitando o canal de navegação para receber navios de 366 metros ainda neste ano e, mais tarde, os de 400 metros. Hoje um navio de 330 metros vai para Argentina, por exemplo, atraca em Santos, vai para outros dois três portos, depois atraca em Santos para terminar de preencher o navio para seguir viagem. Esses navios perdem na costa da América do Sul de 12 a 17 dias. Com o 366, a meta é só encostar em Santos e os outros portos, com navios menores. A gente quer ser hub do Plata: Uruguai, Paraguai e Argentina. Concentro os contêineres em Santos e faço longo curso para Europa e Ásia. E eu vou precisar de mais eficiência nos terminais portuários, sejam públicos ou privados. O nosso trabalho como autoridade portuária é criar ambiente de competitividade dentro do porto, sem canibalizar.
Mas também há gargalos logísticos importantes que precisam ser superados, como a melhoria do acesso rodoviário. Prefeitura e governo do Estado têm realizado obras na entrada da cidade e cobram o governo federal de sua parte no projeto. Como está o andamento disso?
A gente concluiu no ano passado a contratação do projeto-executivo e assinar contrato este ano e endereçar para construção na privatização, para que o novo dono da empresa construa. A gente precisa trabalhar na ideia de que não há dinheiro público para isso. Nossa parte será feita com a privatização. Mas as obras da entrada de Santos já irão ajudar o Porto de Santos. Também teremos solução ferroviária interna, na área de dentro do Porto. Haverá investimento também privado da ordem de R$ 1 bilhão a R$ 1,5 bilhão em ferrovia dentro de Santos, eliminando passagens de nível e conflitos com caminhões e veículos. O modelo de investimento, que deverá ocorrer em cerca de três anos, está em análise no Tribunal de Contas da União. Também está no radar investimentos no Terminal de Passageiros, para atender mais de um navio ao mesmo tempo.
Somando todas as ações, qual o valor de investimento que receberá o Porto de Santos?
Somando setores ferroviário, rodoviário, novos arrendamentos, expansão de terminais, chega a R$ 8,6 bilhões de cinco a 10 anos. Além disso, a empresa estuda incluir no processo de privatização túnel ligando as duas margens (Santos e Guarujá), estimado em R$ 2,5 bilhões.
E a ligação seca, que hoje é a ideia em discussão no Estado?
A ponte não resolve. E não só para o Porto. Não adianta nada para o processo logístico inteiro. É o túnel que resolve o problema de tráfego, já que ele terá três faixas de rolagem em cada sentido, bem em frente ao Porto, saindo na entrada do estacionamento do Terminal de Passageiros da Concais. Já que criticamos a ponte, é fundamental que a gente dê a solução. E a solução é o túnel.