São quase 7h quando Bruna dos Santos, 19, inicia um trajeto de cerca de 200 metros com baldes nas mãos. Ela voltará a percorrê-lo logo mais, e também perto das 11h, das 15h e às 18h —ou sempre que precisar de água para lavar a roupa, a louça, cozinhar, dar banho nos filhos e tomar o seu próprio banho.
O destino é um poço raso improvisado de onde retira água amarelada e compartilha com vizinhos de uma das ruas do conjunto Marighella.
O amontoado de casas fica em Ananindeua, cidade paraense próxima a Belém que oscila a cada ano entre a 99ª e 100ª posição do ranking de saneamento das cem maiores cidades do país.
Nem sempre o trajeto é viável. Se dentro de casa a água falta, fora é preciso lidar com alagamentos em época de chuva. Para se deslocar, moradores afundam o pé na na maçaroca de lama e esgoto.
“Se pisar, no outro dia já amanhece com febre e dores no corpo”, relata ela, que costuma levar os filhos para a casa de parentes nesse período na tentativa de evitar doenças.
Parte de seus vizinhos, contudo, recorre à água da chuva para abastecer os baldes. Com o alagamento, o poço original é invadido pela sujeira.
Bruna e seus vizinhos são alguns dos 35 milhões de brasileiros que vivem sem acesso à rede de abastecimento de água, pilar do saneamento básico.
O outro pilar, o acesso à coleta e tratamento de esgoto, está mais atrasado: inexiste para 100 milhões, quase a metade da população do país.
Para se ter uma ideia, seria o mesmo que deixar toda a Colômbia, Argentina e Chile, juntos, sem nenhuma rede de esgoto. Ou, ainda, ter o Canadá inteiro sem água tratada.
A situação parece ainda estar longe de mudar. Levantamento da Folha a partir de dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério de Desenvolvimento Regional, mostra que o indicador de acesso à água tratada passou, em dez anos, de 81,4% para 83,5%.
Já o de coleta de esgoto foi de 40,9% para 52,4%, mas desacelera desde 2013. Ou seja, o avanço anual do índice de atendimento de água e esgoto no país foi, respectivamente, inferior a 0,3 ponto percentual e de 1,3 ponto percentual, levando-se em conta os indicadores nos últimos dez anos.
Se esse ritmo for mantido e os valores de investimento permanecerem iguais, bem como o tamanho da população, serão necessários mais 50 anos para o país atingir 100% de acesso nas duas categorias (projeções de entidades do setor com as mesmas condições colocam a universalização do acesso para depois de 2060).
Serão, pelo menos, três décadas de atraso em relação à meta do Plano Nacional de Saneamento Básico, que previa que isso ocorresse até 2033. O cálculo é de entidades como o Trata Brasil e CNI (Confederação Nacional da Indústria).
“Em saneamento, estamos no século passado”, diz Roberval Tavares de Souza, presidente da Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental). “Temos indicadores de terceiro mundo.”
O cenário se agrava com a disparidade entre regiões.
Enquanto no Norte o índice de acesso à rede de coleta de esgoto é de 10%, no Sudeste, é de 78,6%. O mesmo abismo é visto em relação ao abastecimento de água, o qual varia de 57,5%, na região Norte, a 91,2% na Sudeste.
Para especialistas ouvidos pela Folha, faltam investimentos e atenção ao problema. “O saneamento em geral não é prioridade e não é tratado com lógica de Estado. É sempre uma questão política, não tem continuidade”, diz Souza.
Há ainda efeito da queda no volume de investimentos na área nos últimos anos. De 2014 a 2017, o valor passou de R$ 19,7 bilhões para R$ 9,2 bilhões. Os dados são do Ministério de Desenvolvimento Regional, e compreendem investimentos do governo federal e outros agentes em água, esgoto, drenagem urbana e resíduos sólidos.
Separados apenas os valores de água e esgoto, a queda foi de R$ 15,9 bilhões, em 2014, para R$ 7,8 bilhões, em 2017.
“O investimento está caindo, e a necessidade é crescente. Precisamos de cerca de R$ 22 bilhões ao ano. Mas o Brasil investe metade disso”, diz o presidente do instituto Trata Brasil, Édison Carlos.
Ele diz ver avanços desde 2007, ano em que foi aprovado o atual marco regulatório do saneamento básico. Mas esses são insuficientes diante do atraso que havia no setor.
Carlos chama a atenção para a redução do investimento do governo federal. “Tem sobrado cada vez menos recurso para infraestrutura. E dentro da infraestrutura, o saneamento é o primo pobre.”
Para o relator especial da ONU em direitos humanos em água e saneamento, Léo Heller, o Brasil caminha hoje na contramão de países que atingiram a universalização do acesso a esses serviços.
“A história dos países que avançaram nessa direção mostra forte investimento público. É preocupante um país que ainda acumula muitos déficits em vários dos serviços de saneamento que haja retração por parte do Estado”, afirma.
Problemas de gestão, falta de integração entre serviços e falta de planejamento são outros entraves. “Temos um quadro de gestão dessa política muito fragmentado, com baixa articulação”, diz Heller, que vê necessidade de integração do governo federal com serviços estaduais e municipais.
“É preciso aperfeiçoar gestão, regulação e modelos tarifários. Investir fortemente no planejamento dos planos municipais de saneamento e na criação de espaços de participação dos usuários.”
Ao todo, apenas 41,5% das cidades têm plano municipal de saneamento básico, documento que traça indicadores e metas para ampliar o acesso, segundo a edição mais recente da pesquisa Munic, do IBGE. E, mesmo entre essas, falta controle da aplicação do plano, apontam especialistas.
Ananindeua, por exemplo, teve o plano elaborado em 2012. Mas pouco avançou. A prefeitura cita o aumento populacional e a ocupação desordenada como fatores de atraso. Já a Cosanpa, empresa responsável pela oferta do serviço, alega que faltou investimento de gestões anteriores.
Enquanto isso, gente como Bruna dos Santos precisa deixar a própria casa e se juntar a parentes em parte do ano se quiser obter água potável, evitar alagamentos e a contaminação do esgoto —na casa dela, que mantém um banheiro do lado de fora, os dejetos são despejados em um igarapé.
“Aqui, só fica quem não tem condições de se mudar”, diz Simone Correia, 36. Neste ano, ela ficou e viu problemas de saúde se acumularem por toda a vizinhança. “Deu diarreia na rua toda”, relata. “Quando um sarava, outro arriava.”
Ananindeua foi palco de nove protestos neste ano, a maioria com uso de pneus para bloqueio de vias, contra a falta de água, drenagem, pavimentação e rede de esgoto.
Margarete Pastana, 33, voluntária em uma ONG, esteve em um deles, em agosto. Pedia a conclusão de obras prometidas para a região onde mora, no bairro Icuí-Guajará. “É a única forma que encontramos de chamar a atenção”, diz. Até agora, não foi atendida.
Por Natália Cancian e Pedro Ladeira
Fonte Folha de S.Paulo