Porcaria. A palavra que o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, usou para se referir ao VLT Carioca (Veículo Leve sobre Trilhos) insiste em soar aos meus ouvidos. Talvez porque, para mim, ela transcenda manobras políticas e sintetize justamente a condição a que foi reduzido o projeto das manifestações sociais que se espalharam pelo país em 2013.
Na época, eu trabalhava na França, de onde tinha a percepção de que o Brasil finalmente decolava rumo ao futuro. A efervescência de uma nova classe média exigindo melhores serviços era sedutora. Era o gatilho para rediscutir a vida nas nossas cidades, cujo crescimento desordenado as transformou em espaços caóticos. E também para criar cidades mais inteligentes, sustentáveis e justas – enfim, com mais qualidade de vida.
Naquele ano, ganharam forma algumas propostas de grandes intervenções destinadas a repensar espaços urbanos degradados. Uma delas foi o Projeto Porto Maravilha – da prefeitura do Rio de Janeiro em parceria com a iniciativa privada –, cujo objetivo era revitalizar a região portuária e conectá-la ao centro da cidade.
O projeto contemplou a mobilidade urbana, privilegiando o transporte coletivo, a conexão inteligente entre diferentes modais e a construção de um sistema de VLT. Este deu origem ao VLT Carioca – um meio de transporte moderno e integrador e que favoreceria a criação de mais espaços para a circulação de pedestres, a revitalização também do centro histórico e a atração de usuários do transporte privado.
Na região portuária, foram previstos ainda obras de reurbanização, melhorias na infraestrutura, requalificação de áreas de moradia, serviços de iluminação pública e coleta de lixo, bem como ações de engajamento junto à comunidade.
Os debates sobre cidades mais sustentáveis e inteligentes avançavam no país, apesar da iminente degradação do ambiente de negócios.
De súbito, no entanto, os bons ventos mudaram de direção. E o que era deixou de ser.
Em 2014, a crise econômica varreu os desejos coletivos de melhorias no transporte, segurança e educação. A luta agora era para proteger o que cada um já tinha conquistado para si. Com a corda no pescoço, o caráter propositivo das manifestações do ano anterior foi reduzido a pó e deu lugar à falta de perspectiva entre os brasileiros.
A bola da vez passou a ser o combate à corrupção – apresentada como a ‘responsável’ por todas as mazelas da população. Em vez de se discutir como otimizar o transporte público, por exemplo, a opção foi colocar na conta da corrupção toda a culpa pelo alto preço das tarifas.
Em 2015, já de volta ao país, meu olhar – outrora de espectador – recaiu sobre a realidade imposta pela crise. Quanto mais ela avançava, mais eu me convencia de que vivíamos a ressaca dos anos de crescimento.
De lá para cá, o Brasil que estava prestes a abraçar o futuro virou uma nação sem futuro. Nas discussões sobre políticas públicas e transformações urbanas, regredimos.
Há muitas e ótimas ideias e ações de intervenção, mas elas têm abrangência local e não estão sendo capazes de ganhar escala a ponto de transformar nossas cidades e suas disfuncionalidades.
Afinal, já dizia a imortal frase do arquiteto Daniel Burnham: “Não faça planos pequenos. Eles não têm mágica para agitar o sangue dos homens e, provavelmente, não serão realizados.”
A transformação de Medellín, considerada a cidade mais violenta do mundo no início dos anos 1990, é a prova de que mudanças significativas demandam ambição e horizontes mais amplos.
No redesenho da cidade colombiana, a mobilidade foi ferramenta-chave para promover equidade e mais justiça social. Sistemas integrados de transporte público foram planejados para manter a cidade em movimento e conectar os bairros isolados – por excelência, os mais empobrecidos e os dominados pelo tráfico.
O destaque ficou por conta do investimento em linhas de metrô, teleféricos, VLP (sistema similar ao VLT, mas com tração sobre pneus – necessários devido ao relevo da linha), pontes e escadas rolantes, em torno dos quais foram criados praças, bibliotecas, centros culturais, entre outros pontos de convívio social. Nascia ali uma nova forma de ocupar e experimentar Medellín – com base nas demandas da própria comunidade.
Tudo isso só reforça a tese de que são necessários grandes sonhos para impulsionar as verdadeiras transformações.
Aqui no Brasil, entretanto, eles continuam sequestrados pelos discursos de combate à crise e à corrupção. Enquanto as cidades do mundo inteiro discutem mobilidade, segurança, acessibilidade e redução de emissões, as nossas ainda enfrentam um vácuo de planejamento.
Investir em transformação urbana é impulsionar a produtividade e inclusão social. É tornar nossas cidades mais resilientes, seguras e inteligentes. É fomentar a inovação.
Para isso, precisamos de ambição. Temos que redespertar, superar os anos perdidos e retomar do ponto em que paramos. Motivos para repensar nossas relações com as cidades é o que não nos falta!
*Cristiano Lopes Saito é engenheiro de produção especializado em políticas públicas e inovações urbanas. Tem mais de 20 anos de experiência no planejamento de estratégias de desenvolvimento de infraestrutura, mobilidade urbana e energia, com vivências na América Latina e Europa. Cursou especializações no Brasil e no exterior, com graduação pela Poli-USP.
*Os artigos publicados com assinatura, não traduzem necessariamente a opinião do Instituto de Engenharia. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo