“O carro é o cigarro do futuro”, diz Lerner

Ex -prefeito de Curitiba e ex -gov ernador do Paraná, Jaime Lerner hoje é mais reconhecido
por suas propostas para mobilidade urbana do que pelos 1 5 anos dedicados à política. 

O sistema de transportes que implementou na capital paranaense em 1 97 4 foi adotado por mais de 250 cidades no mundo. No Rio, comandou o projeto da região metropolitana para os Jogos
Olímpicos, que incluiu o BRT (Bus Rapid Transit) ou transporte rápido de superfície. “Não temos mais tempo nem dinheiro para v er no metrô uma solução. 

Precisamos 'metronizar' o ônibus e criar um sistema de transportes públicos integrados. Sozinha, a bicicleta também não resolv e”, diz ele. 

Aos 78 anos, com uma agenda internacional que v ai de Angola a países asiáticos, Lerner defende a redução de v agas de garagem e a progressiv a utilização do carro em sistema de aluguel, como item do mobiliário urbano. 

Sua busca de soluções para as cidades é tema do documentário “Jaime Lerner – Uma História de Sonhos”, de Carlos Deiró, que chega aos cinemas no dia 8. O filme acompanha 30 anos da v ida do arquiteto e urbanista, que, nesta entrev ista ao Valor, diz acreditar que, no futuro, trataremos o automóv el com os limites dados, atualmente, ao cigarro. 

Valor: O arquiteto Paulo Mendes da Rocha afirma que, para corrigir as cidades, é preciso ir em busca dos altos ideais do gênero humano. Há espaço para
isso no Brasil de hoje? 

Jaime Lerner
: Sempre ex iste. A cidade é o último refúgio da solidariedade. É muito mais do que um conjunto de obras. Não dá só para pensá-la por meio da
área econômica, da tecnologia ou da performance. Pensamos a cidade de maneira integrada: é um projeto de v ida, trabalho, mobilidade, lazer. 

Valor: O senhor já disse que uma cidade que divide ricos e pobres em guetos é mal resolvida. O senhor acha que o Brasil caminha nessa direção?

Lerner:
Cada v ez mais. As pessoas v ão para a Europa, gostam das cidades e, na v erdade, gostam da div ersidade que elas apresentam. Chegam aqui e querem a cidade separada: morar aqui e trabalhar lá. Separam as funções e as pessoas por renda, idade, religião. 
Sempre que v ocê faz isso, não acontece coisa boa. Falase em tecnologia para mobilidade e cada v ez mais em “smart cities”, cidades resilientes, competitivas. Na v erdade, isso são apenas “gadgets” para serem vendidos. Quando se fala nos grandes problemas, se esquece que o carro continua ocupando o mesmo espaço.
Valor: Como o senhor vê o papel do automóvel hoje para as metrópoles? A Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenbrave) divulga uma queda de 28% nos emplacamentos com relação ao ano passado. 

Lerner: Ficamos muito dependentes do automóv el como única solução de mobilidade. Procura-se o carro sem motorista, avança-se na tecnologia e na performance. Para resolv er o problema da cidade é preciso ter moradia, trabalho, lazer, tudo junto. 

Valor: Como o senhor acha que podemos evoluir para isso? 

Lerner: Não é difícil. Em v ez de pensar na minha casa minha v ida, com a moradia cada v ez mais longe e a cidade mais espalhada, dev eríamos pensar minha casa, minha v ida, minha cidade. A mobilidade se resolv e por v ários meios. Transformando o ônibus em metrô, que é o BRT, tendo bicicleta e “car sharing”. 
Você não precisa ser o dono do veículo, isso tem que ex istir cada v ez mais. Não é ser contra o automóv el. Ele v ai continuar a gerar empregos. Você vai ter o automóv el para v iagens, para lazer, mas a maneira de usá-lo precisa mudar. 

Valor: Como o senhor vê a questão das bicicletas para a questão da mobilidade? 

Lerner: Tudo é bom, principalmente com a filosofia de não ser o dono, de usar conforme a necessidade. Mas pensar que bicicleta v ai resolv er, não é v erdade. É um modo de transporte sustentáv el, que ganha cada v ez mais importância nas cidades europeias. Mas tentar resolv er só com a bicicleta não dá em São Paulo. 
Só uma faixa pintada para o ônibus também não. É necessário dar ao transporte público a mesma qualidade e até melhor do que o metrô. Em São Paulo seria como “metronizar” o ônibus, já que 86% dos deslocamentos são feitos na superfície. Se pensa no transporte só com corredores. É uma v isão equivo cada. O que funciona para mobilidade é uma rede de transportes. 

Valor: O pedágio urbano seria uma das soluções? 

Lerner: Não. É mais uma v ez esperar que se dê o dinheiro para o carro continuar. Em Londres fizeram uma área, foi um sucesso. Depois começaram a ampliar, foi o contrário. Valor: Aqui a classe média tem a cultura do carro aos 18 anos. 

Lerner: Não sou contra. Tenho um neto com carro que usa transporte público. O carro é o cigarro do futuro. Vinte anos atrás, quem imaginaria que seria proibido fumar em todos os recintos fechados? Imagina se na França, na Espanha, no Japão, as pessoas achariam isso possív el. No entanto, aconteceu. Com o carro v ai acontecer o mesmo. As cidades não se v iabilizam mais com o uso do carro no dia a dia. Porque do jeito que está, circular passa a ser uma tortura. 

Valor: Que exemplos de cidades o senhor daria?

Lerner: Qualquer cidade europeia. As cidades brasileiras, todas, têm grande possibilidade de ser muito melhores. É possív el ter uma São Paulo sem periferia? É. E também um Rio sem periferia. Mas é necessário mudança de paradigmas, com o pensamento de que a cidade só ex iste quando ela acontece para todos e todas as funções têm que estar juntas. 

Valor: O senhor acha que o modelo paulistano de rodízio está superado? 

Lerner: Caquético. O rodízio, quando se baseia no modelo carro com final par, carro com final impar, lev a o v iciado a ter dois automóv eis. O rodízio melhora,
mas não é solução.

Autor: Valor Econômico