Esta é a primeira lembrança de Ricardo Furquim do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos (SP), onde ingressou em 2011, aos 17 anos: uma palestra longuíssima, com quase três horas de duração. Nela, um dos pró-reitores da escola discorria sobre todas as maneiras pelas quais um aluno, ao longo do curso, poderia repetir de ano ou mesmo ser desligado da instituição. E havia muitos perigos.
Esta é a primeira lembrança de Ricardo Furquim da École Polytechnique, nas imediações de Paris, para onde se bandeou em 2014, aos 20 anos: uma palestra longuíssima, com quase três horas de duração. Nela, um dos pró-reitores da escola discorria sobre as inúmeras oportunidades que os alunos, ao longo do curso, teriam para aprender e desenvolver atributos, como a vocação e o talento. E havia muitas possibilidades.
A diferença entre os dois parágrafos anteriores é, ao mesmo tempo, pequena e gigantesca. Sob o aspecto formal, eles são similares. As variações, por sua vez, ajudam – como em um pequeno símbolo – a entender um fenômeno preocupante na educação no Brasil, embora ainda pouco debatido. As principais escolas de engenharia do país estão caducando. Elas perderam o viço. Já não cumprem a missão que lhes caberia em uma economia minimamente nutrida: formar líderes, lançar no mercado jovens dispostos – e preparados – para mudar o mundo.
O déficit é de qualidade
Esse não é um tema trivial. Os engenheiros estão na linha de frente da aplicação de todo tipo de tecnologia no dia a dia das pessoas. Na prática, eles ajudam a atiçar a competitividade e a inovação. Por isso, são tidos como peças-chave das engrenagens produtivas de uma nação. No Brasil, até aqui, muito se discutiu sobre o déficit desse tipo de profissional. Estimativas apontavam uma demanda em aberto da ordem de 150 mil engenheiros. Em um país com tantos gargalos estruturais, o senso comum aceitou tal quadro com naturalidade. Não é bem assim, contudo.
Um estudo dos pesquisadores Divonzir Gusso e Paulo Nascimento, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), indica a existência de um cenário diverso. O Brasil forma poucos engenheiros. Isso é um fato. Vale tanto para uma comparação com países desenvolvidos como para o contraste com economias mais chinfrins, com performance em desenvolvimento humano similar à brasileira, como México, Turquia e África do Sul (veja quadro à pág. 90). Aqui, entre todos os formados no ensino superior, menos de 5% são engenheiros. Na China, são mais de 40%. Essa, porém, é a imagem que se vê no mapa-múndi, sem considerar a dinâmica do mercado brasileiro.
Gusso e Nascimento, ao analisar o período entre 2000 e 2012, não identificaram sinais de uma procura excepcional por engenheiros. Isso quando observado o mercado nacional como um todo. Na média, os salários da categoria não subiram muito além do das demais. O que não indica uma demanda aquecida no mercado, no período analisado. Os técnicos do Ipea, por outro lado, perceberam algumas novidades. Houve, por exemplo, uma guinada na opção profissional de muitos jovens.
Em 2011, o número de calouros em carreiras ligadas a ciências, matemática e engenharia superou pela primeira vez na história do país o de jovens que ingressaram em faculdades de Direito. “O crescimento concentrou-se na engenharia”, diz Gusso. A profissão virou uma febre nacional. No período estudado, os ingressos no total de cursos superiores brasileiros aumentaram 120% e as conclusões, 149%. Na engenharia, esse avanço foi de 381% e 200%, respectivamente.
Isso, nem de longe, quer dizer que tudo vai bem. Ao contrário. O salto está associado a um período de crescimento econômico que torna algumas profissões, como a engenharia, mais atrativas. Esse já não é o caso brasileiro. Além do mais, a maioria dos ingressos de calouros ocorreu em cursos fracos (notas 1 a 3 no Enade). Somente 30% deram-se em salas de aula de melhor padrão (notas 4 e 5). “Por isso, o número de engenheiros pode até aumentar, mas os profissionais serão formados por instituições de baixo desempenho”, diz Gusso. “Na prática, eles não atendem às expectativas do mercado.” Os pesquisadores do Ipea também identificaram outros desequilíbrios no setor. Faltam, por exemplo, profissionais experientes, que possam liderar projetos (a engenharia estava em baixa nos anos 80 e 90).
Onde empinar um sonho?
Em suma, a média dos formados, ainda que melhore em volume, é ruim em qualidade. Por isso, a situação torna-se mais crítica, quando as escolas top também dão mostras de patinar. O caso de Ricardo Furquim, o garoto que trocou o ITA pela Polytechnique, também pode ilustrar esse ponto. Nascido em Rio Verde (GO), um dos paraísos da soja no Brasil, ele também morou em Teresina (PI) e em Fortaleza (CE). No ensino médio, era fã de documentários sobre tecnologia, inovação e ciência, exibidos em canais como The History Channel ou National Geographic. “Eu queria ter acesso àqueles laboratórios, aprender a colocar foguetes no espaço ou a planejar uma megaconstrução”, diz. Chegou ao ITA, seco para trabalhar na “fronteira do conhecimento”.
Mas aí…
Diz Furquim: “Percebi que, mesmo com um excelente material humano, mesmo com excelentes alunos, o ITA parecia encalhado na década de 70. Eu me assustei com a infraestrutura. Via partes do teto caindo, goteiras e uma péssima rede elétrica. O que mais me espantou foi a total falta de ligação com a indústria, os poucos acordos de colaboração internacionais com boas universidades e a falta de motivação geral. Na Polytechnique, vejo que conseguirei o que buscava no ITA. Tenho certeza de que me tornarei um profissional de excelência, com a capacidade de gerar impacto positivo em qualquer indústria que eu trabalhe”.
Outro jovem brilhante, o paulistano Fabio Arai, de 18 anos, mudou de endereço escolar no mês passado. Ele deixou a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) para ingressar no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). Arai, no entanto, não teve como impulso para a mudança decepção com o curso brasileiro. Desde os 13 anos, ele vislumbra a possibilidade de estudar fora do país.
O rapaz é um colecionador de medalhas, conquistadas em olimpíadas científicas, notadamente em física e astronomia. Ganhou mais de 30 delas. Com 14 anos, participou de um evento no Massachusetts Institute of Technology (MIT). O desafio, ali, era criar um robô. A máquina deveria ao menos andar em linha reta. Arai foi além. Acrescentou ao bichinho um braço que funcionava à semelhança de um guindaste. Este ano, ele foi aprovado em um timaço de escolas americanas: Princeton, Berkeley, Columbia e Duke. Optou pelo Caltech, porque o instituto abriga um laboratório da Nasa. O sonho de Fabio Arai é trabalhar em projetos que, literalmente, avancem até a estratosfera.
Em uma peregrinação recente pelas universidades americanas, isso para decidir em qual delas iria estudar, Arai confirmou a existência de um abismo entre a motivação dos alunos de lá e os de cá. “Aqui, as pessoas querem o diploma. Depois que entram em uma boa faculdade, sabem que vão conquistar um bom espaço no mercado de trabalho”, diz. “Nas grandes escolas americanas, é diferente. O comprometimento dos estudantes é outro: eles querem aprender, querem evoluir.”
Fuga de (jovens) cérebros
A Fundação Estudar orienta e auxilia jovens brasileiros a ingressar em faculdades no exterior. Ela é mantida por alguns bambambãs do mundo dos negócios (Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira, Marcel Telles e André Esteves). Dados da instituição apontam que aumentou o número de jovens brasileiros que fazem cursos de graduação no exterior. Ele passou de 4.086, entre 2009 e 2010, para 4.684, entre 2012 e 2013. Dito assim, parece pouco. Uma migalha, ante os 7 milhões de brasileiros matriculados no ensino superior. Essa percepção, contudo, muda quando o foco fecha em um caso real.
A saída de Ricardo Furquim do ITA, a rigor, não tem nada de excepcional. Essa não foi a primeira vez que um jovem escapou por entre os dedos do instituto (ou de outras grandes escolas de engenharia do Brasil), atraído pelo canto sedutor de grandes cursos globais. Isso acontece. É natural que seja assim, principalmente em um mundo com fronteiras cada vez mais tênues e crescentes facilidades de intercâmbio.
Até agora, porém, essas perdas no ITA davam-se em um ritmo de conta-gotas – um a um, vez ou outra. Isso mudou. Em dois anos, pelo menos 13 jovens de duas turmas trilharam o mesmo caminho de Furquim. Debandaram em bloco para a Polytechnique. Não é pouca gente. As classes do instituto funcionam como grupos de câmara – são pequenas, embora estejam em processo de expansão. Hoje, cada um dos seis cursos oferecidos pela escola tem, em média, 20 alunos. O ITA forma entre 100 e 120 engenheiros por ano. A recente fuga de jovens cérebros representa, portanto, mais de 10% dos estudantes que concluem a graduação. Parece com o futebol: os nossos craques das ciências duras estão saindo cedo demais do país. Por isso, acreditam alguns especialistas, sem a certeza da volta.
Assédio bilíngue
Só na base da lábia é impossível reter esses garotos. As propostas que recebem são irresistíveis. A Polytechnique, por exemplo, oferece de tudo, assim que os seus selecionadores farejam uma massa cinzenta promissora. “Tudo”, aqui, quer dizer exatamente isso: tudo. Além da oportunidade de viver uma experiência cultural única em outro país, os estudantes recebem bolsa, suporte permanente de professores e, se o aluno desejar, a cidadania francesa após a formatura. Assim, ele poderá exercer a profissão na França. A escola nem sequer exige que os candidatos a vagas falem francês, pois sabe que essa é uma língua em uso minguante no planeta. A garotada faz as avaliações em inglês e, depois, mergulha em um curso megaintensivo (gratuito, claro) de francês. Qual o resultado dessa política de captação de craques? Hoje, as turmas da Polytechnique reúnem jovens de 59 nacionalidades distintas.
Fabio Arai, o rapaz que fez o robô no MIT, também recebeu propostas de cair o queixo. Na Universidade de Columbia, em Nova York, ele teria direito a uma bolsa de pesquisa de US$ 6 mil, para se debruçar sobre qualquer assunto que escolhesse. Note: está dito “pesquisa”, sendo que o garoto ainda nem sequer ingressara na graduação. Mesmo assim, ele optou pelo Caltech. “Tinha mais a ver comigo”, afirma. “Agora, o mais importante não é o que vou receber, mas o que vou fazer e até onde posso ir.”
O novo estereótipo
A necessidade de renovação dos cursos de engenharia no Brasil – mesmo entre os que ocupam o topo da cadeia alimentar – é uma unanimidade entre especialistas. Esse, aliás, não é um dilema apenas brasileiro. Trata-se de um desafio global. Hoje, o que se pretende em todo o mundo é, no mínimo, tornar as salas de aula desses cursos compatíveis com fenômenos como o Big Bang digital e as mudanças de comportamento das novas gerações. A agravante é que, aqui, as engrenagens pedagógicas estão enferrujadíssimas.
José Roberto Cardoso, ex-diretor da Poli de São Paulo, narra uma história que ilustra à perfeição o tamanho desse anacronismo. Ele recebeu, recentemente, um e-mail da neta. Ela estuda engenharia na Universidade Federal de São Carlos (SP), uma escola de excelência no Brasil. A garota tinha uma dúvida sobre uma tarefa de cálculo. Cardoso resolveu a questão. “Encontrei o mesmo exercício, com resposta e tudo, em um livro de 1970, que eu usava quando cursei a faculdade”, diz. “Reconheço o valor das obras do passado, mas será que nada deveria ter mudado nesses últimos 40 anos?”
Sobram experiências, mas ainda não existe consenso em torno de um novo modelo para os cursos de engenharia. Algumas peças para a construção de um protótipo, contudo, já têm contornos bem nítidos. Em resumo, o que se busca é moldar um profissional preparado para lidar com os desafios do século 21. Por isso, o perfil almejado do novo engenheiro guarda poucas semelhanças com o velho estereótipo do hiperespecialista, isolado em um cantinho, com uma calculadora na mão.
Espera-se, hoje, que o engenheiro seja criativo, comunique-se bem, saiba trabalhar em equipe (um pré-requisito em qualquer área), lidere, empreenda (mesmo que dentro de uma empresa) e, principalmente, que tenha apetite pela inovação. “Hoje, ocorre o contrário”, diz o físico e engenheiro Roberto Leal Lobo, consultor e ex-reitor da USP, um dos principais nomes do debate sobre a renovação das escolas de engenharia no país. “O nosso engenheiro é formado para reproduzir, não para inovar.”
Engenharia com arte
A lgumas práticas pedagógicas em voga buscam tornar as aulas mais interessantes e participativas. Preconizam, por exemplo, uma melhor distribuição ao longo dos cursos de matérias mais áridas, como matemática, física e química. Elas devem ser ao menos intercaladas com trabalhos práticos, sempre que possível executados em grupo. A lógica contida nesse princípio é a seguinte: os alunos não precisam saber toda a física ou toda a matemática para, somente depois, tomar contato com a engenharia. “Mesmo porque, antes de Newton e Galileu, pontes e aquedutos já eram construídos”, diz Cardoso, da Poli. “Os trabalhos práticos tornariam as aulas menos maçantes e mais envolventes.”
Os currículos também tendem a ser flexíveis. Devem permitir a inclusão de matérias do interesse dos alunos, ainda que elas soem estranhas para os ouvidos afinados no diapasão das velhas escolas. Muito se fala, por exemplo, sobre a ligação entre arte e engenharia. Para demonstrar que ela faz sentido, basta uma palavra – Apple. Na prática, Steve Jobs e Steve Wozniak, os criadores da empresa, não fizeram outra coisa além de promover o casamento entre a arte e a engenharia, tendo o design como amálgama – ou templo. Isso para produzir uma nova interface entre homens e computadores. “Fazer engenharia com arte é difícil”, dizia Wozniack. “Mas é assim que se deve fazer.”
Na Universidade de Yale, esse mix funciona, embora seja incipiente. Há um ano, a escola inaugurou um centro de engenharia, inovação e design. Na prática, é uma fábrica-laboratório (a fab lab, o novo bibelô dos nerds) dotada de ampla parafernália instrumental, como impressoras 3D, onde os alunos podem imaginar e construir coisas. Que coisas? Quaisquer, contanto que consigam concebê-las e executá-las. “Os estudantes de engenharia amaram o espaço e isso não nos surpreendeu”, disse Peter Salovey, o presidente de Yale, a NEGÓCIOS. “O fascinante foi que os estudantes de arte também adoraram. Eles querem trabalhar com os futuros engenheiros em projetos que, afinal, também devem ser vistos como artísticos.”
A maldição da letargia
As grandes escolas brasileiras não estão alheias às mudanças em curso no mundo. Ao contrário, muitas delas têm divulgado amplos projetos de renovação. O ITA está nessa lista. A escola já declarou metas ambiciosas. Elas contemplam o aumento de alunos (as vagas devem dobrar em cinco anos), a contratação de professores e a construção de novos alojamentos e laboratórios. O investimento previsto é de R$ 300 milhões. “Essa expansão física, no fim das contas, transformou-se em um pretexto”, diz Carlos Américo Pacheco, reitor do ITA. “Precisamos mesmo é reinventar a escola.”
Por isso, o plano também prevê a abertura de dois centros de inovação. Um deles funcionaria no campus da faculdade. O outro em um parque tecnológico externo. A ideia é que, em ambos, os alunos possam realizar trabalhos, pesquisas e ampliar o contato com empresas. A escola também está firmando um amplo acordo de colaboração com o MIT.
A Poli, da USP, que comemora 121 anos em 2014, também se sacudiu. Entre outras medidas, flexibilizou o currículo e firmou acordos internacionais de intercâmbio de alunos com instituições de ensino de primeiríssima da Europa. Quer ainda construir um baita laboratório de inovação e empreendedorismo, orçado em R$ 20 milhões. Projetado por Ruy Ohtake, ele foi concebido para funcionar à semelhança do fab lab de Yale.
Tudo lindo, não fosse uma barreira cabeludíssima. A maior parte das grandes faculdades de engenharia do Brasil é pública. Tal característica, como se sabe, embute uma maldição – a infinita letargia oficial. O ITA, por exemplo, até agora não tirou do papel o projeto dos centros de inovação. Um deles, o que seria erguido fora da escola, aguarda definição de financiamento por parte do BNDES. O contrato com o MIT, articulado há dois anos, não estava assinado até o mês passado. Na Poli, a construção da fábrica-laboratório já deveria ter começado. Com a atual crise da USP, corre o risco de virar peça de ficção.
Fosse outro o cenário, seria mais fácil levar adiante uma proposta feita por Roberto Leal Lobo, o ex-reitor da USP. Ele defende que a sociedade abrace o desafio de classificar pelo menos cinco escolas de engenharia brasileiras entre as cem melhores do mundo, em um prazo de 15 anos. “Isso faria grande diferença para o país”, diz. “Daríamos um salto real na formação de engenheiros.” Hoje, o Brasil tem apenas três instituições entre as 200 melhores. São elas a Poli (em 97º lugar), a Unicamp (152º) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (172º). Como se vê, falta muito.
Autor: Época Negócios