G1 recria a maior photographia do mundo em 1922, feita no Brasil

E se você pensasse em uma fotografia por dois anos, pesquisando sobre tudo que seria preciso para clicá-la? Condições climáticas, composição envolvendo diversos quadros, local de onde fotografar, melhor horário… E depois disso, levasse mais de um ano até finalmente tirar a fotografia e vê-la no papel como ela fora imaginada lá atrás? 

VEJA O ANTES E O DEPOIS PANORÂMICO

Foi assim, entre 1919 e 1922, que o pioneiro fotógrafo carioca Valério Vieira produziu a imagem então apontada como o “Record de maior photographia do mundo”: o “Panorama nº 2” de São Paulo, originalmente com 16 metros de comprimento por quase 1,80 metro de altura. Neste ano comemoram-se nove décadas desde sua primeira apresentação ao público.

O G1 publica esta semana o especial 'Do olhar à fotografia', uma série de reportagens que têm a fotografia como tema, para celebrar a semana que antecede o Dia Mundial da Fotografia, no domingo (19). A data é referente a 19 de agosto de 1839, quando a França apresentou ao mundo os estudos de Louis Daguerre que resultaram no daguerreótipo – marco considerado por muitos como o 'nascimento' da fotografia. As próximas reportagens deste semana passam por estilos de fotografia específicos, como de guerra e natureza, e abordam novos rumos vistos como opção na aplicação da fotografia. O especial também abre espaço para a participação do internauta, convidado a contar a história do seu 'melhor clique' pelo VC no G1. 

história da realização da raríssima imagem de Valério Vieira, que permanece há anos guardada no acervo de um museu paulistano e pode voltar a ser exposta num futuro próximo, impressiona por si só em diversos detalhes. O G1 resgatou essa história e conseguiu reproduzir, agora em formato digital, a enorme panorâmica. A comparação é de impressionar.

O processo
Com auxílio de 30 contos de réis da prefeitura de São Paulo, o Panorama foi feito para as comemorações do centenário da Independência do Brasil, em 1922. Mas um detalhe básico quase impediu a ampliação da imagem: a inexistência de papel no tamanho necessário para o projeto.

Não era a primeira experiência do fotógrafo brasileiro com imagens gigantes – o “nº 2” no título deixa a dica. Anos antes, em 1908,Valério já tinha produzido uma panorâmica de São Paulo com 12 metros de comprimento, que levou o “Gran-prix” (grande prêmio) ao ser mostrada na Exposição Nacional do Rio de Janeiro.

“Antes ainda, ele já tinha feito a panorâmica da fazenda Santa Gertrudes, no interior de São Paulo, que tinha 6 metros de comprimento”, explica Sonia Balady, fotógrafa e pesquisadora cuja tese de mestrado na USP estudou a obra de Valério Vieira e está se tornando na primeira biografia do fotógrafo.

Depois que as cinco chapas sequenciais que compõem o panorama foram batidas do topo da torre da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, no bairro de Campos Elíseos, não existia papel no mundo que fosse grande o suficiente para ampliá-lo do tamanho que Vieira tinha imaginado. Essa dificuldade, inclusive, ajudou a estabelecer o recorde, conseguido depois que o fotógrafo optou por produzir, ele mesmo, o papel.

“Telegramas foram expedidos para Alemanha, França, Bélgica, Inglaterra, Itália e Estados Unidos, indagando a possibilidade de fornecerem o papel com as medidas exigidas (2 m por até 20 m). Nem a Kodak, dos Estados Unidos, nem a NPG, da Alemanha, (…) quiseram aceitar a encomenda”, diz um folheto da época sobre a obra 

Valério acabou por transformar sua sala de jantar, primeiro em um laboratório para estudo dos processos químicos, e depois em uma verdadeira “fabrica de papeis photographicos”, como ele mesmo descreve no folheto em que, orgulhoso, apresenta o “Record”.

Mais à frente, já para a ampliação, o artista conta que usou a luz solar através de uma das maiores lente do mundo, vinda da Alemanha, para expor o papel sete vezes, compondo o panorama parte por parte. Na revelação, 14 pessoas atuaram ao longo de uma noite inteira para dar os banhos químicos necessários no papel, trabalho realizado no porão de um cinema.

A descrição dos processos só atribui ainda mais peso à importância histórica da obra.

Sumiço
O projeto apresentado ao governo para o pedido da verba previa que, após a exposição no centenário, o Panorama viajaria por exposições nas cidades mais importantes da Europa e dos Estados Unidos. No entanto, ao longo dos 50 anos seguintes, o paradeiro da obra é cercado de mistério.

“A última informação que temos é de uma exposição em St. Louis, nos Estados Unidos, e de uma aparição no programa da Hebe Camargo na década de 1960. Depois, ela ressurge para a 2ª edição da Bienal Nacional, em 1972, no Museu de Arte Moderna (MAM)”, afirma Henrique Siqueira, diretor do museu paulistano Casa da Imagem, onde a fotografia de Vieira hoje se encontra guardada.

Siqueira levantou um pequeno “dossiê” sobre a obra com o intuito de fazer um projeto para que o Panorama volte a ser exposto, agora na Casa da Imagem. A estrutura para acomodar uma obra desse porte, no entanto, requer financiamento e adaptações, por isso a mostra ainda vai ser viabilizada, explicou o diretor ao G1.

Pioneiro em montagens
A obra mais famosa de Valério Vieira e que lhe deu fama até fora do país, no entanto, não foi a panorâmica paulistana. Em 1904, com a montagem “Trinta Valérios”, ele foi agraciado com a medalha de prata na St. Louis Purchase Exposition, nos Estados Unidos. A imagem mostra uma sala com músicos tocando diferentes instrumentos, uma grande plateia, um garçom e até a estátua de um busto e quadros na parede, somando 30 personagens todos representados pelo próprio Valério.

De fato, ele foi o fotógrafo de São Paulo que mais se especializou nessa técnica, o que é evidenciado, por exemplo, em um cartão de Boas Festas com um “buquê de Valérios” que ele distribuiu entre seus clientes no fim de 1903. Mesmo na música, outra paixão do artista, é possível encontrar traços dessa especialidade. Na ilustração de uma capa muito bem humorada em uma de suas partituras, ele se retrata ao mesmo tempo como homem e como mulher, de vestido e tudo, mas com o bigode sempre presente.

Avô Valério
Nas paredes da sala, só dá Valério. Aos 83 anos, Maria Luiza Vieira, neta do fotógrafo, lembra com carinho da presença do avô. “Ele sempre me chamava: 'Vem tirar retrato!'. E eu ia correndo”, conta. O arquivo de Valério Vieira não a deixa mentir, já que a imagem da neta aparece diversas vezes, desde bebê. Alguns desses retratos ilustram os móveis da sala de Maria Luiza, como ela mesma mostrou ao G1.

Os grandes exemplares de obras importantes do avô nas paredes, no entanto, não são os originais. “Eu preferi doar a maior parte do que eu tinha para museus, onde elas vão ser bem preservadas. Só fui ter ciência da importância do meu avô para a fotografia quando eu já tinha alguma idade, mas desde então passei a dar o maior valor”, afirma.

Maria Luiza também gosta de lembrar da paixão de Valério pela música, e mostra com orgulho as reproduções de partituras do avô. “Ele sempre tocava músicas na casa dele na Lins (Avenida Lins de Vasconcelos, no bairro de Vila Mariana, São Paulo), onde inclusive ele veio a falecer. Lembro de sempre ir lá quando era pequena, ele tinha um bom piano”, diz a descendente. Os originais das partituras de Vieira foram doados, segundo a neta, ao Centro Cultural São Paulo, no bairro de Paraíso.

São Paulo panorâmica, 90 anos depois
Com a ajuda de Sonia Balady, o G1 identificou o local de onde o “Panorama nº 2” foi fotografado, no bairro de Campos Elíseos, na zona central de São Paulo.

O padre Marcos Sérgio da Silva, responsável pela Paróquia Sagrado Coração de Jesus, já tinha conhecimento da antiga fotografia de Vieira e permitiu que a reportagem subisse no local para reproduzir a imagem, no dia 24 de maio de 2012.

O folheto produzido na época pelo fotógrafo para detalhar a obra dizia que ela tinha uma abertura de 180°, assim como algumas reportagens citando o Panorama nas últimas décadas. O G1 constatou, no entanto, que a vista panorâmica contempla um ângulo maior ainda, de ao menos 240°.

A montagem em panorama do G1 foi feita a partir de 9 imagens sequenciais com o auxílio de um programa de edição – enquanto Vieira “colou” suas imagens durante a ampliação de forma completamente manual.

Com o passar dos anos, o Panorama vem sofrendo degradação, principalmente nas bordas, e já passou por alguns trabalhos de restauração nas últimas décadas. Suas dimensões atuais foram reduzidas para 14,20 m de comprimento por 1,60 m de altura, sem contar uma borda que foi adicionada às laterais, segundo o relatório sobre o último restauro.

Autor: G1