No passado até o início da década de 60 os projetos referentes às obras de saneamento, incluindo as ETEs, eram feitos pelo próprio corpo técnico permanente de engenheiros lotado nas repartições e serviços púbicos estaduais e municipais de água e esgotos ou por meio de consultores independentes , quase sempre professores universitários das disciplinas associadas principalmente à hidráulica de rios e canais.
Ao final desta era começaram a surgir empresas de consultoria especializadas na elaboração de projetos de saneamento, quase todas elas capitaneadas por engenheiros civis egressos do serviço público, que com suas capacitações técnicas e administrativas adquiridas ao longo dos anos de trabalho, se animaram à empreender no setor privado induzidos pelo formidável “boom” surgido nos anos 70 com o advento das empresas estatais de saneamento, bem como do Banco Nacional de Habitação (BNH), braço financeiro de apoio a uma nova infraestrutura de saneamento implantada à época pelo regime militar (Planasa).
Neste cenário, as obras de infraestrutura sanitária, dentre elas as estações de tratamento de esgotos tinham seus projetos concebidos por estes poucos consultores, muitos deles formados nos cursos de pós graduação da Faculdade de Higiene e Saúde Pública da USP e com cursos de especialização no exterior, como foi o caso do saudoso engenheiro (civil e químico) Max Lothar Hess, pioneiro em projetos de depuração de esgotos no Brasil, que fez seu mestrado na Alemanha com o legendário Karl Imhoff, cujo famoso livro sobre tratamento de esgotos ele teve oportunidade de traduzir para o português constituindo-se até hoje em uma referência da literatura técnica sobre o tema.
Nesta época, os projetos de ETEs eram concebidos com base em dados empíricos obtidos quase sempre da literatura americana e alemã, além daqueles obtidos como resultado das visitas às instalações similares no exterior empreendidas pelo consultor responsável pelo projeto. Este fato decorria, uma vez que quase inexistiam dados da experiência brasileira, exceto aqueles utilizados para o dimensionamento das lagoas de estabilização, de longe a tecnologia de tratamento biológico mais empregada na época ( e ainda hoje) graças ao seu baixo custo e disponibilidade de áreas livres e condições climatológicas. Foi desta forma que foram concebidos e dimensionados outros processos biológicos de tratamento como filtros biológicos, lagoas aeradas, valos de oxidação e lodos ativados clássicos.
Entretanto, via de regra a maior parte destes projetos eram implantados apenas parcialmente devido principalmente à carência de recursos financeiros e aos aspectos políticos envolvidos. No máximo se construíam tratamentos preliminar e primário constituído de gradeamento, caixa de areia, decantador e digestor de lodo ou “ tanque Imhoff” e, quando muito, filtro biológico.
Os equipamentos utilizados nas ETEs, pelo fato de não haver em consequência uma produção regular ocasionada pela baixa demanda, eram praticamente feitos sob medida adaptando-se aos projetos dimensionados quase sempre empiricamente. Nesta linha eram
fabricados grades, removedores mecânicos de lodo , misturadores, agitadores, aeradores superficiais, dispositivos de distribuição em filtros percoladores, além de bombas.
Somente São Paulo e Rio dispunham de ETEs de maior porte como as ETEs Cidade Vargas, Pinheiros e Vila Leopoldina em São Paulo e Penha e Ilha do Governador no Rio. Foi, no entanto, a partir da década de 70, com advento do Plano Sanegran em São Paulo que estações de tratamento de grande porte foram construídas (ETE Barueri, Suzano e ABC) a partir de projetos concebidos com base em consultoria de empresas norte americanas de projetos de saneamento como a Hazen&Sawyer. No Rio foi implantado o emissário submarino de Ipanema, também com ajuda de consultoria externa (Engineering Science).
Em consequência, o mercado de empresas de consultoria em saneamento se expandiu com o surgimento de empresas do porte da Hidroservice, Planidro, Tecnosan e Coplasa em São Paulo e os escritórios técnicos Saturnino de Brito, Enaldo Cravo Peixoto e Luiz Catanhede no Rio. Também empresas de equipamentos se expandiram e ampliaram o seu leque de fornecimento de uma maior linha de produtos fabricados, muitos deles sob licença de fabricantes estrangeiros detentores de patente no exterior. Dentre as empresas nacionais fabricantes de equipamentos destacavam-se Infilco/ Bygton, Degremont, Filsan, Paterson, Solanil, entre outras.
Paralelamente, com a promulgação de legislações ambientais no âmbito estadual e o consequente estabelecimento de padrões de emissão e de qualidade de água, bem como a criação de agências ambientais (Cetesb em S. Paulo e Feema, atual Inea, no Rio) surgiu um novo mercado representado pelo tratamento de efluentes industriais, praticamente inexistente nos primórdios do saneamento justamente pela ausência de um “enforcement” legal. São desta época o Decreto 8468/76 em S. Paulo e a NT 202 no Rio, em vigor até hoje.
Ao contrário dos projetos de ETEs urbanas que patinavam pelas razões políticas e econômicas já expostas, os projetos de sistemas de tratamento de efluentes industriais (ETDIs) experimentaram um crescimento acelerado ocasionado por uma demanda reprimida e principalmente pela atuação das agências ambientais que agregavam poder de comando e controle com prerrogativas de até cessar o funcionamento de atividades poluentes até que as desconformidades ambientais tivessem sido ao menos equacionadas.
No entanto, os problemas referentes a falta de subsídios técnicos que permitissem conceber e dimensionar, por meio da adoção de parâmetros reais e não só empíricos, estes sistemas de tratamento de características multidisciplinares ainda persistiam, pois eram pobres as pesquisas e a experiência prática oriundas de instalações já implantadas que pudessem subsidiar os ditos projetos, malgrado os esforços da Cetesb e de algumas universidades ( como as federal e estadual de São Carlos, SP) no desenvolvimento de pesquisas aplicadas como as do tratamento da vinhaça. Por conta disso, parâmetros de projeto eram quase que inteiramente obtidos na base da consulta à literatura técnica americana constantes notadamente nos diversos “guidelines” da EPA (Environmenta l Protection Agency).
Iniciativas privadas visando minorar este problema com soluções amoldadas à realidade nacional, reduzindo-se consequentemente a dependência da literatura alienígena neste mister, emergiram destacando-se a criação em 1979 em São Paulo da Ambiental
Laboratórios (Atual NovaAmbi) que se propunha, através de ensaios de tratabilidade em amostras representativas do despejo industrial sob teste conceber sistemas de tratamento, obtendo-se parâmetros de projetos específicos e o conhecimento antecipado da real performance de processo de tratamento em escala plena.
Mesmo assim, já nos anos 80, em uma outra e importante vertente, as empresas fabricantes de equipamentos procuravam um maior intercâmbio técnico com suas congêneres no exterior objetivando importar tecnologias mais sofisticadas de equipamentos utilizados em sistemas de tratamento de efluentes industriais, cujo mercado, ao contrário das depuradoras municipais, continuava em expansão mercê a elevação dos níveis de exigências ambientais. Em consequência, foram firmadas algumas parcerias entre empresas nacionais e estrangeiras incluindo até mesmo mudanças de controle acionário (caso do acordo envolvendo Filsan e FMC), bem como a vinda de empresas estrangeiras ao mercado brasileiro ( casos da Esmil, Parterson entre outras).
Não demorou muito, ao final da década de 90, as empresas de equipamentos multinacionais já de posse de tecnologias de ponta disponibilizadas por suas matrizes localizadas nos Estados Unidos e Europa se diversificaram a ponto de ofertar além dos equipamentos individuais também sistemas completos de tratamento (“pacotes”) direcionados principalmente ao parque industrial, cujas exigências quanto à performance de processo sempre foram e são cada vez mais cobradas.
Neste particular, tem havido nos últimos anos uma revolução no que tange aos processos e equipamentos relacionados ao tratamento de esgotos e de efluentes industriais, sendo os mais notáveis a separação de fases por membranas(em substituição ao decantador secundário) , a otimização de processos biológicos (aeróbios e anaeróbios) mais bem “engenheirados”, o adensamento mecânico de lodos(em substituição aos adensadores por gravidade), secagem térmica de lodos etc, além de toda uma linha de tratamentos avançados objetivando o reuso.
Enquanto isso, com relação aos projetos de ETEs municipais no Brasil as tecnologias de tratamento atualmente utilizadas são geralmente as convencionais fruto da lavra quase que exclusiva das próprias empresas de consultoria contratadas ou de seus consultores sub contratados, normalmente professores universitários que militam na cadeira de saneamento.
Os projetos são desenvolvidos pela empresa de engenharia segundo as modalidades de projetos, básico e executivo: No projeto básico, definem-se a concepção de tratamento e seu dimensionamento envolvendo todas as unidades integrantes do sistema incluindo balanços de massa, fluxogramas de processo e o projeto hidráulico-sanitário.
No projeto executivo, representado pelos projetos arquitetônico, civil, estrutural; mecânico e tubulações; elétrico e instrumentação, detalham-se todas as instalações e especificam-se os equipamentos.
As especificações dos equipamentos, quando encomendadas por empresas do setor público, embora relativamente detalhadas, são propositadamente genéricas feitas de forma a não
privilegiar qualquer fornecedor.Em consequência, deixa de existir a necessária compatibilização entre equipamentos e entre equipamento e tancagem, um dos cuidados inerentes à fase de projeto, situação que frequentemente tem acarretado problemas durante a execução das obras e na própria operação.
Findo o projeto inicia-se o processo de contratação das obras junto a uma empreiteira que normalmente se responsabiliza também pela aquisição dos equipamentos dentro de um mesmo “pacote” de contratação. Tamanha liberdade de ação faculta a construtora até a mudar completamente o projeto envolvendo até mesmo a concepção original de tratamento em busca de opções mais baratas. Contudo, mantida a essência do projeto, muitas vezes os equipamentos adquiridos segundo o critério de menor preço a partir destas especificações muito “elásticas” e sempre pelo critério de menor preço nem sempre se “conversam” ou mesmo se amoldam necessariamente aos tanques projetados nos quais estarão inseridos obrigando a construtora a modificar o projeto. A consequência desta prática é que muitos dos projetos se desfiguram completamente nesta etapa de obra necessitando serem refeitos justamente visando a se adaptarem aos equipamentos adquiridos a posteriori. O resultado, muitas vezes costuma ser trágico com obras de baixa qualidade, por vezes inacabadas e com baixas eficiências.
Diante disso, esta forma tradicional de se contratar os projetos de ETEs pelas empresas públicas de saneamento, tal como estabelecido pelo modelo atual de licitação, deve sofrer modificações no sentido de primeiro resgatar ao poder público a sua prerrogativa em manter do principio ao fim todo o controle do processo de contratação; em segundo lugar definir plenamente o responsável principal pela performance da estação de tratamento, que no modelo atual de contratação é algo difusa haja vista a multiplicidade de atores que participam do mesmo processo acabando por recair no Poder Público o ônus pelo insucesso.
O novo modelo a seguir proposto altera substancialmente a atual forma de contratação deixando de ser pelo modo segmentado como atualmente se pratica. Em seu lugar a contratação se daria por meio da aquisição de uma solução integral avaliada pelo critério técnico e de melhor preço (custos de implantação- CAPEX e custos operacionais- OPEX) com o risco de performance e prazo transferido diretamente ao fornecedor privado , empresa ou consórcio de empresas detentoras de tecnologias e com uma retaguarda econômica financeira compatível com o porte do empreendimento.
As empresas de consultoria e projetos, contratadas previamente, seriam responsáveis pelos estudos ambientais e pelo projeto conceitual da estação de tratamento selecionada definindo-se sua performance à luz dos estudos de autodepuração do corpo receptor de acordo com os padrões legais de lançamento ou reuso e de qualidade, assim como a execução do projeto de interceptores e emissários, elevatórias, projetos arquitetônicos ,etc e também na preparação dos Termos de Referência e posterior avaliação técnica das propostas de ETEs recebidas dos fornecedores de tecnologia nas modalidades “turn Key”, ou EPC a preço global fixo ou outras formas, tais como PPPs e/ou locação de ativos.
Estas alterações conceituais se justificam tendo em vista a busca por garantias de performance impossíveis de serem concedidas segundo o modelo atual. É também condizente com um mercado muito mais adulto, em que a demanda por sistemas de tratamento municipal finalmente “decolou” por força de legislações como a que criou a Política Nacional de Saneamento, bem como de um novo equacionamento de recursos financeiros através do PAC 2- Plano de Aceleração do Crescimento, coordenado pelo Ministério das Cidades, além do surgimento de novos entrantes mediante modelos de parcerias público – privada.
Entretanto, para que as novas modalidades de contratação de projetos de ETEs (e também ETAs) se viabilizem é necessário que o Poder Público avalie as propostas dos fornecedores de tecnologias pelo critério de melhor técnica ao lado de melhor preço. Esta solução, já adotada em diversos países, é também utilizada com sucesso, entre nós, pela Petrobras mercê ao amparo de um dispositivo legal específico (Decreto 2.745/98 –– Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petróleo Brasileiro S.A.) o qual poderia ser adaptado e até aprimorado com vistas as obras de saneamento, particularmente na implantação de ETEs (e ETAs).
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