Não existe no mundo uma representação política dos interesses da humanidade e da Mãe Terra que tutele sua proteção natural e cultural. Há séculos, vivemos sob a jurisdição dos Estados-nação, com suas particulares soberanias e autonomias. Como os problemas se tornam mais e mais globais, esta configuração política é insuficiente para oferecer as soluções necessárias.
A Organização das Nações Unidas (ONU), que seria a instituição apropriada, está desmoralizada e nela só conta o Conselho de Segurança, controlado pelas cinco potências com direito a veto, com os Estados Unidos à frente. Tampouco está disponível um contrato social mundial que estabeleça práticas políticas globais. Faltam referências coletivas que facilitem o consenso e resolvam eventuais conflitos. Esta é uma das causas do fracasso de numerosos encontros internacionais sobre assuntos globais, como o da mudança climática, realizado em dezembro em Copenhague, ou o de comércio mundial, de 2001 em Doha.
Vivemos um momento da história em que está em jogo nosso futuro comum. O encadeamento de crises e especialmente a questão ecológica podem originar uma tragédia de enormes proporções, que impõe a urgente adoção de medidas. O orçamento para isso é uma referência comum, um conjunto de valores, princípios e inspirações que ofereçam um fundamento ético e político à comunidade mundial. O que importa não é a salvação do status quo, mas a salvação da vida e do sistema Terra. Esta é a nova centralidade, que redefinirá os grandes rumos da política.
Consciente desta urgência, o presidente da Assembleia Geral da ONU em 2008 e 2009, Miguel D’Escoto, depois de consultar um vasto arco de personalidades e chefes de Estado, decidiu reformular um projeto de Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade, e me incluiu entre seus redatores (www.servicioskoinonia.org/logos). O texto, que complementará a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, será divulgado na Conferência Internacional sobre o Clima prevista para abril, em Cochabamba, e assume os dados mais seguros da cosmologia contemporânea. Considera que a Terra e a humanidade são parte de um vasto universo em evolução, que possuem o mesmo destino e constituem, em sua complexidade, uma única entidade.
A Terra vive e se comporta como um único sistema autorregulado, formado por componentes físicos, químicos, biológicos e humanos que a tornam propícia à produção e reprodução da vida, e por isto é nossa Grande Mãe e nosso lar comum. Ela está composta pelo conjunto dos ecossistemas, nos quais gerou uma multiplicidade magnífica de formas vitais complementares e interdependentes que integram a unidade sagrada da vida e fazem com que o ser humano, homem ou mulher, seja a própria Terra que fala, pensa, sente, ama, cuida e venera. Como a crise ambiental deve ser enfrentada globalmente, é preciso definir o “bem comum da Terra e da humanidade”.
As características do bem comum são a universalidade e a gratuidade. Deve incluir todos, pessoas e povos, e ao mesmo tempo é oferecido a todos gratuitamente porque representa o que é essencial, vital e insubstituível para a humanidade e a própria Terra. O primeiro bem é a Terra, condição para todos os outros bens. Pertence ao universo, a si mesma e ao conjunto de ecossistemas que a compõem. Os seres humanos não são seus donos, são seus hóspedes. Por ser geradora de vida, possui a dignidade e o direito de ser cuidada e protegida.
A biosfera é um patrimônio que a Humanidade deve tutelar. Isto vale para todos os recursos naturais: ar, água, fauna, flora, micro-organismos e também para a manutenção do clima. Por isso as mudanças climáticas devem ser enfrentadas globalmente, como uma responsabilidade compartilhada. Fazem parte do patrimônio comum os bens públicos a serviço da vida, como os alimentos, as sementes, a eletricidade, as comunicações, os conhecimentos acumulados pelos povos e pela pesquisa, pelas culturas, artes, técnicas, música, religiões, saúde, educação e segurança.
O segundo bem comum é a humanidade, com seus valores intrínsecos como portadora de dignidade, consciência, inteligência, sensibilidade, compaixão, amor e abertura para o Todo. A humanidade aparece como um projeto infinito e por isso sempre inacabado. O fecundo conceito de bem comum proíbe, por exemplo, que sejam patenteados recursos genéticos fundamentais para a alimentação e a agricultura, enquanto as descobertas técnicas patenteadas devem sempre ter um destino social. Pertence ao bem comum da humanidade e da Mãe Terra a convicção de que uma energia benfeitora está subjacente a todo o universo, sustenta cada um dos seres e pode ser invocada, acolhida e venerada.
* Leonardo Boff é teólogo brasileiro, membro da Iniciativa da Carta da Terra e professor emérito de Ética da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Direitos exclusivos IPS.
Autor: Para Terramérica por *Leonardo Boff