A contratação de uma obra ou um serviço não é trabalho para amadores. São tantas as variáveis a serem consideradas, que só mesmo com a soma de grande experiência, amplos conhecimentos, técnicos, econômicos, financeiros, jurídicos, sociais e de mercado, além de muita informação, será possível reduzir ao mínimo os riscos da má contratação.
Para se adquirir qualquer coisa, serviço ou obra, são necessárias várias especificações rigorosamente precisas, do que se quer comprar e de que forma deve ser entregue. Na medida em que os produtos e serviços a serem comprados se tornam mais complexos, mais sofisticada será a operação.
Muitas vezes na compra de alguma coisa não nos damos conta de que fazemos mentalmente uma especificação detalhada do objeto que se deseja, para que o resultado seja satisfatório. Por exemplo, ao adquirir um pacote de 500 folhas de papel para impressora, não notamos que mentalmente especificamos: “cor branca, 75g/m², tamanho A4”. Evidentemente que para uma melhor compra, procuraríamos entre vários “fornecedores idôneos”, as melhores “condições de preço, de pagamento e de entrega”.
Também, ao se contratar uma obra ou serviço, deveríamos obrigatoriamente fazer uma perfeita especificação técnica e uma seleção de fornecedores. Uma análise minuciosa dos prazos de entrega, condições de pagamento e comparação de preços. Qualquer falha na especificação técnica e ou na seleção de fornecedores resultará numa contratação de alto risco.
A redação de regulamentos e leis ao longo do tempo, com base nas experiências bem ou mal sucedidas, é uma das maneiras de se aplicar os conhecimentos adquiridos no aperfeiçoamento dos processos de compras e contratações. Dessa forma as entidades públicas e as empresas privadas foram consolidando suas leis e ou regulamentos buscando minimizar os problemas decorrentes de falhas nas contratações.
No setor público em nosso país, as escolhas de fornecedores, de obras, de serviços e de bens, são regidas pela famosa lei 8.666, que desde sua entrada em vigor está provocando um desmoronamento do sistema de contratações de obras e serviços, afetando as empresas e o mercado, de tal monta que cada licitação se tornou um problema mais jurídico do que técnico, atrasando enormemente os programas governamentais e, conseqüentemente, a contratação, na maioria das vezes, de empresas sem condições de fazer a obra com a qualidade e prazos desejados.
As leis são feitas com base nas experiências sofridas e vividas, e portanto passíveis de modificações para seu aperfeiçoamento, o que não está ocorrendo com a nossa 8.666. Entre muitas de suas falhas, destacamos alguns itens a nosso ver prioritários.
As obras estão sendo colocadas em licitação, sem projeto completo e detalhado, prejudicando totalmente a comparação das propostas.
Não estão sendo analisados devidamente os preços apresentados, faltando elementos para decidir sobre a exeqüibilidade ou não dos preços. Não é possível simplesmente se contratar apenas pelo preço mais baixo.
Melhorar a sistemática de seleção de fornecedores, que mudou de uma legislação muito restritiva para outra completamente aberta, que não está levando em consideração devidamente, a necessária experiência do fornecedor.
E, outro ponto fundamental, senão o mais importante, é a não responsabilização das empresas e dos profissionais de seu corpo diretivo, pela proposição de preços inexeqüíveis, que resultam em alterações no objeto do contrato ou no insucesso econômico provocando piora na qualidade ou paralisação das obras.
Medidas simples, como proibição de participar de outras licitações por um longo período, ou eliminação do registro cadastral, reduziriam certamente grande parte dos problemas.
Falta ao administrador público muitas vezes, tomar decisões drásticas, que certamente não são políticas, que no primeiro momento, aparentemente, atrasaria seu programa de obras, mas evitaria o incalculável prejuízo de uma obra parada.
Bastaria, por exemplo, toda vez que uma empresa apresentasse uma proposta 10% abaixo da proposta em segundo lugar, ou 20% abaixo da média das propostas, exigirem para assinatura do contrato, um seguro-garantia no valor total da proposta. Caberia à seguradora exigir da empresa garantias de tal monta, que se fosse o caso, desistiria do contrato, evitando-se assim o prejuízo ao órgão contratante.
Existe uma tendência natural do responsável pelo setor público em contratar pelo preço mais baixo, numa atitude de auto proteção, para evitar acusações de favorecimento, não se importando com as conseqüências no futuro, quando e se a obra não for completada, ou quando o contratante for obrigado a fazer concessões, para não levar a empresa à insolvência ou paralisar a obra.
No início de minha carreira profissional, tive oportunidade de trabalhar em uma empresa que construiu dois trechos da Rodovia Castello Branco, um em Boituva e outro em Itatinga, o que gerou uma especial predileção pela rodovia e pelo seu entorno, culminando com a compra de uma propriedade rural no município de Itaí, que vim a conhecer durante a construção, pois dele vinham as “pedras brancas” que originalmente revestiam os acostamentos da estrada. Tenho viajado pela Castello de São Paulo até Avaré desde sua inauguração em 1971, no mínimo uma vez por mês nestes 34 anos. Poderia dizer que conheço cada curva, cada obra-de-arte e até hoje me lembro dos trechos de cada empreiteira durante as obras. É para mim um motivo de orgulho ter participado da construção desta rodovia que reputo ser uma das melhores, senão a melhor do Brasil.
Cada vez que passo pelo trecho da serra de Botucatu, na altura do km 205, vejo uma enorme cicatriz naquela maravilha, um trecho com quase dois quilômetros sem a pista direita, por não terem sido concluídas as obras de um viaduto.
Lembro-me de ter passado pelo local durante a construção da estrada, pelos caminhos de serviço, pois não existiam ainda as pistas e visitado as obras de dois viadutos em construção na pista esquerda. O maior deles, com aproximadamente 540 metros de comprimento estava sendo construído dentro dos melhores padrões de construção da época, e tinha um canteiro de pré-moldados na parte mais elevada, muito bem organizado e eficiente, o que permitiu à empresa entregar a obra em tempo para a inauguração no início de 1971.
Nessa ocasião, foi aberta uma licitação para a construção do viaduto da pista direita, semelhante ao outro. O órgão contratante impôs um orçamento básico muito baixo e só aceitaria propostas com preços entre 90% e 110% do orçamento. Apresentaram-se então apenas três empresas. A empresa que estava terminando o viaduto da pista esquerda, com o canteiro montado e em operação, a empresa em que eu trabalhava, com canteiro a 10 quilômetros do local e uma terceira empresa que sabidamente não tinha condições técnicas e econômicas para uma obra de tal porte. Ao se abrirem as propostas, o resultado surpreendente para alguns foi a última empresa citada com proposta de 90% do orçamento do órgão e as outras duas propostas com preços em torno de 130% do orçamento. A proposta da empresa para a qual eu trabalhava, que era especializada em obras-de-arte, talvez a mais importante do país na época, ficou em terceiro lugar. A empresa com canteiro já instalado e operando no local que estava terminando o viaduto ao lado, ficou em segundo lugar com uma pequena diferença, de menos de 3%. A empresa com o menor preço assinou o contrato, iniciou as obras e após alguns meses ficou insolvente e teve sua falência decretada, paralisando a obra.
O que vimos foi uma sucessão de erros, desde a imposição de preços inexeqüíveis pelo órgão contratante, a seleção pelo preço mais baixo, a não aceitação das outras propostas que sinalizavam claramente que alguma coisa estaria errada na licitação.
O sentimento de auto preservação (ou despreparo?) faz com que o administrador público erradamente aceite o preço mais baixo, mesmo com graves evidências de erros. Caso o administrador público na época tivesse anulado a licitação devido à grande discrepância entre os preços, a obra teria atrasado uns seis meses e não 35 anos. Certamente o prejuízo causado ao contribuinte seria infinitamente menor do que estamos pagando pelo capital empregado e não utilizado. Posso afirmar que se a obra tivesse sido contratada pelo segundo preço, o custo benefício teria sido melhor e não teríamos esta vergonhosa cicatriz há 35 anos.
Para agravar as conseqüências, da decisão de contratar a obra pelo menor preço, sem maiores análises, encontramos na altura do km 206, um outro viaduto escondido pelo mato, que para sua utilização necessita da conclusão do viaduto citado. Lembro bem de sua construção que acabou sendo inútil, não tendo sido utilizado até hoje (mais de 30 anos). Mais um desperdício de verba pública aplicada e não utilizada devido a um erro administrativo em uma licitação.
Para completar a má gestão da coisa pública, estas obras atravessam mais de 30 anos e nenhuma providência tem sido tomada para a solução. Em 1998, durante as licitações para seleção de concessionárias para operação e manutenção das rodovias paulistas, o governo perdeu uma grande oportunidade de incluir estas obras no escopo de serviços da concessionária do trecho.
Como não se deve perder a esperança de um dia haver alguma lucidez na administração pública, quem
sabe ainda decidam negociar com a concessionária do trecho a conclusão dessas obras pelo seu contrato, sem pagamento extra, apenas estendendo o prazo de concessão por algum tempo a ser definido em função dos custos da obra.
Estes são os tristes exemplos das conseqüências da escolha pelo menor preço e da má gestão dos recursos públicos.
*Edemar de Souza Amorim é ex-presidente do Instituto de Engenharia
Autor: *Edemar de Souza Amorim para a Revista Engenharia