Difícil acreditar que houve um tempo em que São Paulo era inundada e os paulistanos simplesmente pulavam de alegria. E mais do que isso, que a metrópole de hoje nunca existiria se não fossem as enchentes constantes do Rio Tamanduateí ? que traziam uma enorme fartura de peixes para a região e justificavam a localização da maior aldeia tupiniquim às suas margens. “São Paulo, situada num agradável planalto, com cerca de duas milhas de extensão, é banhada na base por dois riachos, que, na estação das chuvas, quase a transformam em ilha”, resumiu bem o mineralogista inglês John Mawe, em registro do século 19.
A memória paulistana é repleta de cheias. No dia 1º de janeiro de 1850, por exemplo, caiu “uma copiosíssima chuva desde 5 horas da tarde até 11 da noite” ? como resultado, o rio que ficava no Vale do Anhangabaú transbordou e suas águas destruíram 15 casas e uma ponte no cruzamento da Rua São João.
Atualmente, no entanto, o histórico de chuvas se transformou em um lugar-comum para os governantes explicarem as enchentes. Segundo o coordenador do Instituto de Engenharia de São Paulo, João Jorge da Costa, essa comodidade também mascara uma falta de transparência do poder público para lidar com o problema. “Obviamente a capital está em várzeas de rios, a urbanização impermeabilizou ainda mais as terras e o assoreamento piora a drenagem, mas não adianta ficar achando desculpas.”
“Não tem obra mágica. É necessário hoje cobrar um sistema de gestão, onde todo o conjunto de bocas de lobo, galerias e piscinões está cadastrado. Isso está implementado em todas as grandes cidades do mundo. Se isso existisse por aqui, tanto o poder público saberia quais áreas precisam passar por limpeza, como os paulistanos poderiam cobrar ações. Ninguém sabe atualmente se tal piscinão está limpo, se a galeria foi vistoriada. E isso é básico.”
Para o especialista, São Paulo precisaria mudar de mentalidade para reverter os efeitos da urbanização desordenada em seus rios ? que sofrem com interferências diretas desde 1782, quando foi feita a primeira vala de desvio do Rio Tamanduateí, para retificar um trecho. “Teremos uma hora de discutir a descanalização e a desretificação dos rios, e teremos de fazer parques nos entornos”, diz. “Os rios são grandes termômetros da qualidade de vida na cidade. Quando não conseguimos coletar o lixo, tratar o esgoto ou fazer o manejo das águas, isso reflete a condição de São Paulo como metrópole.”
Autor: O Estado de S.Paulo