O futuro é verde

Como numa trama policial, no filme “Quem Matou o Carro Elétrico?” buscam-se culpados pelo desaparecimento do EV (“electric vehicle”), um automóvel movido a baterias que de fato chegou a ser produzido pela General Motors e vendido na Califórnia em 1996. O documentário aponta quatro suspeitos pelo “assassinato”: as companhias petrolíferas, por motivos óbvios; a indústria automobilística, que estaria mais interessada nos lucrativos carrões movidos a combustão; as baterias, que, além de caras e pesadas, limitavam a autonomia; e o próprio consumidor, que, menos envolvido com a causa ambiental na época, não estava disposto a pagar por um veículo mais caro.

Lançado em 2006, o filme americano causou polêmica por exibir testemunhos de consumidores, políticos, ambientalistas e dirigentes das montadoras. Nos dias de hoje, no entanto, se alguém se interessasse em produzir um filme sobre o mesmo tema a história seria outra. O veículo movido a eletricidade certamente ganharia papel de herói, em substituição ao vilão do motor poluente, acusado como um dos principais responsáveis pelo aquecimento global.

A causa ambiental forçou a indústria a acelerar o desenvolvimento de modelos que usam motores movidos a bateria. Os primeiros lançamentos estarão no mercado já no próximo ano. Mas, por enquanto, o carro elétrico só vai circular nas ruas dos países desenvolvidos. Por se tratar de uma tecnologia ainda cara, os primeiros serão vendidos à custa de subsídios governamentais no Japão, Estados Unidos e parte da Europa.

Nos países emergentes, a mudança da propulsão veicular para o sistema a bateria deverá ser mais lenta. Historicamente, países mais pobres costumam ir para o fim da fila quando o assunto é a emissão de poluentes no transporte. Vale lembrar que os caminhões que rodam hoje na Europa seguem regras de emissão que no Brasil entrarão em vigor somente em 2012. As montadoras que produzem e vendem no Brasil são as mesmas que estão na Europa. Mas aqui as empresas tiram proveito de uma legislação mais branda, que elas mesmas ajudam a elaborar.

Em relação aos automóveis, com a estagnação da demanda nos países ricos, a expansão do consumo se voltou para as regiões de renda per capita mais baixa. É nesses mercados que a indústria planeja aumentar as suas vendas. E por isso tem investido na ampliação do parque industrial.

Nesse cenário não há espaço para o carro elétrico, um produto ainda caro, que depende de incentivos que apenas governos dos países ricos se comprometem a oferecer. Mesmo com incentivos, os primeiros modelos movidos a baterias chegarão ao consumidor a preços mais elevados que os os automóveis com motor a combustão.

No caso do Brasil, o elétrico vai demorar mais ainda para chegar. Aqui ele encontra um forte concorrente, o chamado carro flex, que já conquistou espaço na causa ambiental e na indústria. O país se antecipou na descoberta de uma fonte de energia renovável. A descoberta de um sistema que permite o uso de um combustível líquido derivado da cana no mesmo tanque que carrega gasolina consagrou o Brasil e facilitou a vida dos fabricantes. Mas no longo prazo distanciará os brasileiros do modelo de transporte da nova era.

Por um bom tempo, o Brasil, sexto maior produtor de veículos do mundo, deverá se acomodar na solução do etanol. O problema é que o país vai se isolar quando os projetos dos modelos elétricos ganharem fôlego no resto do mundo. Os outros grandes produtores de veículos não têm como explorar o etanol e também já mostraram que não pretendem depender de abastecimento brasileiro.

Hoje, o nível de emissões de um motor movido a álcool é praticamente o mesmo de um a gasolina, segundo os técnicos da indústria. A vantagem ambiental está no ciclo do plantio da cana-de-açúcar, que compensa o dióxido de carbono emitido na combustão. Carro movido a álcool tem hoje o mesmo formato do que roda com gasolina. Mas o modelo elétrico tende a ficar diferente, com o tempo, porque não precisará acomodar as mesmas peças que hoje existem nos modelos que funcionam com motor a combustão.

Apesar das evidências de que sem ele não haverá solução para o aquecimento global, algumas questões ainda conspiram contra o carro elétrico. Uma delas é a dependência de muitas economias na atividade das autopeças. “A indústria metal-mecânica tem sido a base de desenvolvimento de grandes nações desde o final do século XIX, quando substituiu a têxtil”, afirma Gustavo Galvão dos Santos, doutor em economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

No trabalho “Carro Elétrico, e Revolução Geopolítica e Econômica dos Século XXI e o Desenvolvimento do Brasil”, publicado pela revista “Oikos”, Santos e mais três pesquisadores em economia e engenharia abordam o natural esvaziamento da indústria de autopeças. Mudar a estrutura do automóvel terá impactos num país como o Brasil, onde a indústria de peças tem mais de 50 anos, ao contrário da China, onde o desenvolvimento do setor automotivo é bem mais recente.

Entre os cerca de 4 mil componentes que compõem um automóvel hoje, centenas estão ligados a um trem de força idealizado para o motor a combustão. São peças fundidas e forjadas, diversos pequenos motores e tudo o que envolve os equipamentos de transmissão e suspensão. Essa estrutura também alimenta o setor de oficinas de manutenção, que certamente será bem menos complexo na era do carro elétrico.

O automóvel que circula nas ruas hoje também carrega forrações especiais para portas, tetos e capôs, que ajudam a diminuir o ruído do motor. O carro elétrico é silencioso. Não precisa de nada disso. A partir da sua criação, os desenhistas também ganharão mais liberdade.

Mas o custo ainda pesa contra o carro elétrico. Os fabricantes de veículos estão em busca de parcerias para diluir despesas com desenvolvimento de produto. E quando o produto estiver no mercado será preciso contar com subsídios de governos. Um dos primeiros elétricos que devem aparecer no mercado japonês em 2010 é o i-Miev, da Mitsubishi. As primeiras informações dão conta de que o preço desse modelo chegaria a US$ 47,5 mil. Mas o fabricante espera que o governo ofereça subsídios de pelo menos US$ 14 mil.

A ajuda dos governos, não apenas com os de bônus na venda do veículo, como também na organização da infraestrutura necessária para carregar as baterias, determinará a agenda dos lançamentos. A Nissan escolheu Portugal, Israel e Dinamarca para a primeira fase de lançamento do seu modelo elétrico, o Leaf, no fim de 2010, porque os governos desses países se comprometeram a dar incentivos e a espalhar os chamados eletropostos. O governo da França já se comprometeu a providenciar um milhão de pontos de recarga até 2015.

Mas o que mais tira o sono das equipes de desenvolvimento do carro elétrico é a limitação da autonomia. Embora as baterias tenham melhorado muito ao longo dos últimos anos, com uma carga completa é possível chegar no máximo a 160, ou 165 quilômetros. “Melhorar a autonomia é um grande desafio”, diz o engenheiro Marco Saltini, vice-presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, que representa as montadoras no Brasil. Saltini, um dos executivos mais envolvidos nas discussões sobre emissões e matriz energética no país, diz não ter dúvidas de que o carro elétrico vai chegar. Mas, ao mesmo tempo, ele considera que “é preciso tomar cuidado com o excesso de otimismo” em relação a um produto que, por ser ainda caro, provocará impacto negativo nos mercados. Para o executivo, é bom lembrar o “trunfo que o Brasil sustenta com o etanol, o melhor combustível renovável do mundo”.

Os carros elétricos que estão sendo desenvolvidos pela indústria usam, na maioria, baterias do tipo íon-lítio, que podem ser recarregadas em tomadas comuns. O tempo de carregamento é de sete a oito horas. Mas se a tomada for trifásica, é possível completar 80% da carga em meia hora.

Os defensores do carro alimentado por baterias lembram que, em uso urbano, cerca de 80% dos proprietários de automóveis percorrem menos que 70 quilômetros por dia, o que torna o elétrico com a autonomia de hoje ideal. “Mas o que faria um motorista de taxi?”, questiona Saltini.

O tempo que levará para que os carros elétricos sejam vistos em grandes quantidades depende de vários fatores. Entre as projeções otimistas consideradas sensatas, o presidente do grupo Renault/Nissan, Carlos Ghosn, estima que, até 2020, 10% dos carros vendidos no mundo serão movidos por baterias.

A origem da energia abre espaço para outra discussão. Para o economista Gustavo Galvão dos Santos, o jogo de forças entre os países deverá ficar mais definido a partir das discussões em Copenhague. Essa nova relação de forças definirá a futura matriz energética mundial – da mesma forma como o monopólio americano no refino do petróleo ditou regras quando os Estados Unidos inventaram a linha de montagem, há 100 anos. Desta vez, porém, pesa também a urgência em resolver o problema do aquecimento global.

Santos lembra que Japão e Europa estão menos ligados aos interesses da indústria petrolífera. Tendem, então, a acelerar mais o processo de lançamento dos veículos elétricos do que os Estados Unidos. Por isso, talvez venham do Japão os lançamentos dos primeiros modelos puramente elétricos, previstos para 2010 (i-Miev, da Mitsubishi, e Leaf, da Nissan), embora quase todas as montadoras tenham projetos prontos.

Nesse cenário, a posição da China é a grande incógnita. Em princípio, os chineses não teriam pressa em usar carros elétricos porque, nesse aspecto, o país está em dívida com o ambiente: o carvão é a principal fonte de energia dos chineses. Mas se a energia elétrica ditar o rumo do transporte mundial daqui para a frente, os chineses já têm um modelo de veículo elétrico para os mais pobres. A montadora chinesa BYD (“Build your dreams”) tem pronto um modelo que promete vender por pouco mais de US$ 20 mil. O preço cai porque as baterias são de ferro. Embora mais pesadas, custam menos.

Mesmo que o Brasil ainda esteja em fase de lua de mel com o etanol, o país também tirará proveito quando o carro elétrico chegar, segundo o engenheiro Leonardo Cavaliere, supervisor de inovações e veículos especiais da Fiat. Ele lembra que, além das usinas hidrelétricas, o Brasil tem a vantagem dos ventos no desenvolvimento da energia eólica e também potencial como poucos para explorar a energia solar. “O pior ponto de captação de energia solar no Brasil hoje equivale a 60% do melhor ponto da Alemanha, o país que hoje mais explora energia solar”, destaca Cavaliere.

O engenheiro da Fiat comanda uma experiência brasileira com carro elétrico. Há dois anos, a usina de Itaipu encomendou 50 unidades do modelo Palio movido com baterias. A entrega do último lote será nos próximos dias. A frota, que serve para uso interno da usina, utiliza uma bateria à base de cloreto de sódio, totalmente reciclável, importada da Suiça. Fã do automóvel elétrico, Cavaliere diz que, ao longo desses dois anos, aprendeu que “uma mudança cultural, que ultrapassa os limites da engenharia automotiva, está a caminho”.

É possível também que, por bom tempo, o mundo conviva com dois ou até três tipos de veículos. Isso significa que as cidades teriam modelos movidos a combustão, elétricos e também híbridos. Os dois representantes da indústria no Brasil – Cavaliere e Saltini – preveem que, antes de chegar ao carro elétrico, muitos países que ainda não experimentaram o carro híbrido, como é o caso do Brasil, deverão passar por essa fase.

O carro híbrido é aquele que leva dois motores, um elétrico e outro a combustão. O propulsor a combustão carrega o elétrico e a tração do veículo pode ser feita por ambos ou só pelo elétrico.

O híbrido tem a vantagem da autonomia, já que não é preciso parar o carro para carregar a bateria. Mas está longe da proposta de emissão zero, garantida pelo elétrico. O nível de poluentes desse tipo de veículo cai 40% em relação ao que funciona só com motor a combustão, segundo a indústria. Vale lembrar que nos Estados Unidos, a participação dos híbridos nas vendas não tem passado de 2%. O Prius da Toyota, um dos híbridos mais populares, foi lançado há dez anos. Mas até hoje não chegou no Brasil. Segundo argumentos repetidos pela indústria, a baixa escala não justificaria o alto custo de produção. Agora a Toyota se prepara para lançar o chamado Prius plug-in, que poderá ser carregado na tomada, o que reduzirá o gasto de combustível.

A General Motors se prepara para lançar o modelo Volt no início do ano. O automóvel da GM tem dois motores. Um elétrico e outro que pode funcionar com gasolina (ou mesmo álcool). Apesar de não ser um puro elétrico, o modelo entra nessa categoria porque o motor a gasolina é utilizado somente para a recarga do elétrico, que efetivamente cuida da tração do veículo.

As condições para revolucionar o sistema de transporte existem. A duração da polêmica em torno de cada dificuldade é o que pode retardar as mudanças. O jogo de forças mal começou. No filme “Quem Matou o Carro Elétrico?”, um representante da Ford sai em defesa da indústria: “O consumidor quer o carro elétrico, mas não quer pagar por ele; e eu não posso fabricá-lo por menos”. No mesmo filme, ex-usuários contam como se sentiram quando os elétricos foram retirados pela indústria das ruas da Califórnia. Entre eles, o ator Mel Gibson questiona: “Quem controlará o futuro? Quem tiver o taco maior”.

Autor: Valor Econômico