Hidreletricidade – O licenciamento ambiental deve se ater só às quesões pertinentes a ele

Enquanto o mundo todo se defronta com o problema de reduzir as emissões de gases responsáveis pelo aquecimento global (principalmente dióxido de carbono), o Brasil produz 85% de sua energia elétrica com água dos rios, isto é, hidreletricidade, que é limpa e renovável. Nos Estados Unidos e na China, os maiores emissores de CO2 do mundo, a energia elétrica é produzida queimando principalmente carvão, que é o pior dos poluentes.

Os estudos disponíveis mostram que o nosso potencial estimado de hidreletricidade é de 261 milhões de quilowatts, dos quais somente 30% estão sendo utilizados. Os restantes foram apenas inventariados ou estimados. Como explicar, portanto, que estejam ocorrendo tantos problemas na expansão do atual sistema de geração, a ponto de estar sendo privilegiada a construção de usinas térmicas, com combustíveis não-renováveis (carvão ou óleo diesel), que certamente produzirão mais poluição, a custos mais elevados?

A energia que pode ser gerada nos rios disponível no Sudeste do Brasil foi quase toda aproveitada, mas há ainda um enorme potencial a ser desenvolvido na Amazônia, além de pequenas centrais hidrelétricas em todo o País, que representam, em geral, 10% do potencial hidrelétrico total, usualmente não exigem a construção de barragens e têm impactos ambientais mínimos.

O governo atribui as dificuldades na obtenção do licenciamento ambiental à pressão que organizações não-governamentais e alguns integrantes do Ministério Público exercem sobre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Ao licenciar as Usinas de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, a atuação do Ibama parece ter melhorado um pouco, mas agora é a Usina de Belo Monte que enfrenta grandes dificuldades no seu licenciamento, como relatado por Washington Novaes neste mesmo espaço em 25 de setembro.

Este não é apenas um problema brasileiro e vale a pena comparar o que se passa no Brasil com o que acontece em outros países do mundo no que diz respeito à construção de novas usinas hidrelétricas. Na Índia, país com uma alta densidade populacional, a construção de uma hidrelétrica em que a barragem provoca o alagamento de áreas e desloca populações tem dado origem a grandes protestos.

O Banco Mundial e a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês) criaram há dez anos uma comissão (a Comissão Mundial de Barragens) para analisar esses problemas e fazer recomendações – uma vez que o Banco Mundial é o principal financiador de grandes empreendimentos hidrelétricos.

A conclusão mais importante da comissão é a de que a construção de barragens para hidrelétricas pode, realmente, criar problemas sociais e ambientais, mas esses problemas devem ser comparados com os benefícios que geram. De fato, a construção de uma hidrelétrica implica a realocação de populações ribeirinhas. Em alguns casos típicos ocorridos no Brasil, cerca de 10 mil pessoas foram afetadas por usinas que geram 1 milhão de quilowatts. Sucede que esta eletricidade beneficia uma população de pelo menos 2 milhões ou 3 milhões de habitantes localizados, às vezes, a mil ou 2 mil quilômetros do local onde a hidrelétrica foi construída. Uma decisão sensata é realocar as populações afetadas e incluir o custo dessa ação no custo da construção da usina.

Quando o impacto é puramente ambiental, áreas são inundadas e a cobertura florestal, perdida, o que cumpre fazer é criar unidades de conservação que garantam a preservação em áreas de cinco ou dez vezes maiores que a área inundada.

Isso é difícil de fazer na Índia, onde simplesmente não existem áreas disponíveis, mas pode ser feito na Amazônia sem grandes problemas.

O que não parece razoável é trazer para o licenciamento ambiental um certo número de problemas que são de natureza política. Por exemplo, a construção de uma usina hidrelétrica – como a de qualquer outra grande obra – leva à contratação de milhares de pessoas, cujos empregos são provisórios, pela própria natureza da obra; concluída a obra, eles precisam se deslocar, e isso faz parte da própria evolução do sistema produtivo. O bairro da Lapa, em São Paulo, há cem anos era pontilhado de chaminés das Indústrias Matarazzo (e outras), que hoje desapareceram, dando lugar a um bairro essencialmente residencial.

A legislação ambiental brasileira prevê compensações ambientais decorrentes dos impactos de obras de qualquer natureza, além da obrigação de mitigá-las. Porém não vai ao ponto de proibir a sua realização.

Algumas vezes se critica a construção de hidrelétricas questionando qual o uso que será dado à energia gerada. Essa é uma questão relevante para o modelo de desenvolvimento brasileiro (que, em geral, é energointensivo), mas não é um problema ambiental.

O fato de esses problemas frequentemente serem levantados por ambientalistas, e não por políticos, acaba por dar a eles a reputação de serem contrários ao progresso e ao desenvolvimento.

O licenciamento ambiental pode e deve ser rigoroso, mas deve se ater às questões pertinentes a ele. Grandes obras que usualmente dão origem a controvérsias, como hidrelétricas, portos e estradas, são de interesse público e muitas vezes propostas por órgãos do próprio governo. São, portanto, diferentes de condomínios e residências de interesse exclusivo de empreendedores. Nada mais natural, portanto, que os órgãos de licenciamento trabalhem juntamente com os proponentes para melhorar os projetos e estabelecer as exigências ambientais necessárias para sua viabilização.

*José Goldemberg é professor da Universidade de São Paulo

Autor: *José Goldemberg para O Estado de S.Paulo