A historiadora Aline Silva Lima traça a atuação dos engenheiros do Iocs e projeto do órgão no combate à seca
Fortaleza Há 100 anos, o surgimento da Inspetoria de Obras contra as Secas (Iocs) sinaliza não apenas uma mudança na atenção dispensada a uma região do Brasil marcada pela estiagem. Há toda uma mobilização que busca levar um conhecimento superior, de base científica, para alterar não apenas a paisagem, mas as relações do homem com o meio.
Este é um dos focos da dissertação que será defendida pela historiadora Aline Silva Lima. Mestranda em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC), a historiadora trabalha, a partir da documentação do acervo do Dnocs, o projeto de combate às secas preconizado tanto pelo Iocs quanto pelos engenheiros que supervisionavam as diversas obras do órgão na região do semiárido.
“Na época havia um discurso entre os engenheiros de resolver o problema da seca não só com a construção de reservatórios e outras benfeitorias, mas formar o camponês para lidar com o ambiente de outra forma, ´salvando-o da ignorância´. Tanto que todas as obras do Iocs com mais de 50 operários tinham escolas. O Iocs também tinha uma perspectiva de um trabalho mais organizado, estratégico”, avalia.
O trabalho aborda a atuação do engenheiro amazonense Abelardo André dos Santos. Entre 1912 e 1918, o engenheiro administrou as obras de construção do Açude Tucunduba, em Senador Sá, que na época era termo (uma espécie de distrito) de Santana do Acaraú.
Conflito de visões
Formado pela Escola Politécnica da Bahia em 1911, os documentos mostram que originalmente ele trabalhava na Inspetoria de Portos e Canais da Bahia, órgão que, assim como o Iocs, era ligado ao Ministério de Viação e Obras. “Na documentação pesquisada, não consegui identificar concurso, cessão ou transferência do engenheiro entre os dois órgãos. O que se sabe é que ele vem por indicação de um inspetor do Iocs”, explica a pesquisadora.
O engenheiro tinha cerca de 26 anos quando chegou ao Ceará, acompanhado da família. “Na época era preciso seguir de barco de Fortaleza até Camocim e de lá pegava-se um trem até Santana do Acaraú. A parte final da travessia era feita em lombo de animal. O trajeto tinha duração de dois dias”. Após o Tucunduba, ele supervisionou a construção de outros açudes e da estrada de rodagem que ligaria Baturité a Guaramiranga. O engenheiro se aposentou em 1932, na Paraíba, quando o órgão já tinha a denominação de Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (Ifocs).
Segundo Aline Silva Lima, a concepção de levar o progresso e a ciência a regiões inóspitas do País de que o engenheiro estava imbuído logo entra em confronto com os interesses e modos de atuação locais, muito marcados por relações de compadrio. Pouco depois de sua chegada, em 1913, Abelardo dos Santos baixa uma norma estabelecendo a relação de um feitor para um grupo de seis operários, como forma de organizar o serviço e diminuir custos.
A medida levou a demissão de vários feitores, o que desagradou o líder político da localidade vizinha, Riachão, o comerciante José Belarmino.
O engenheiro passou a receber cartas com desenhos e ameaças de morte e, numa ocasião, ele e um auxiliar chegaram a ser encurralados por um grupo armado dos feitores demitidos. “De acordo com o inquérito policial aberto na ocasião, o José Belarmino teria comandado esse grupo armado, mas nada aconteceu porque os demais trabalhadores foram ao socorro do engenheiro. O José Belarmino era sócio da casa de comércio e fornecedor de gêneros para a obra, já que aquele era um local então longe de tudo. Ele acaba sendo expulso após a investigação feita pelo capitão Ladislau, de Camocim, por conta das ameaças. O interessante é que o capitão, após terminar a investigação, envia uma carta ao engenheiro pedindo trabalho na obra a dois conhecidos”.
Relatórios e recursos
A principal fonte de pesquisa são os relatórios mensais que o engenheiro envia para a sede do órgão durante o transcurso da obra. Escritos na linguagem técnica, própria desse tipo de documento, eles trazem, no entanto, uma descrição rica sobre o meio, a condução dos trabalhos, as regras e punições, as relações com os trabalhadores e até mesmo as questões políticas envolvendo o órgão nascente.
“É possível perceber que, apesar da Inspetoria buscar imprimir uma atuação baseada na eficiência e na administração, já havia o problema da falta de regularidade no envio de recursos, sempre na dependência do interesse ou não dos governantes da ocasião”, pontua Aline.
Também é possível depreender, pelo material pesquisado, que nem sempre os trabalhadores se envolviam com as ideias do projeto. “Muitos procuravam as frentes só no período de seca, eles eram conduzidos mais pela sobrevivência do que por um sentimento nacional”.
REESTRUTURAÇÃO
Dnocs quer atuar em todo o Brasil
Fortaleza Numa época de celebração de ações realizadas ao longo dos 100 anos do Departamento Nacional de Obras contra as Secas, este também é um período de pensar no que pode ser feitos nas décadas futuras. “Há quem diga que o Dnocs já cumpriu a sua missão, mas eu diria que é exatamente o contrário. O Dnocs terá, daqui a 100 anos, uma função ainda mais relevante por conta da degradação provocada pelo aquecimento global”, analisa o diretor geral do órgão, Elias Fernandes.
Segundo ele, a preocupação encontra base diante dos processos de desertificação identificados em Estados como Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. “Estamos lutando no Congresso Nacional para que haja mudanças na estrutura do Dnocs a fim de que ele possa atuar não só na região do semiárido, mas em todo Brasil, quando a situação assim o exigir. O que se percebe é que há processos de estiagem em locais como o Rio Grande do Sul e Tocantins, e nesses casos o Dnocs poderia atuar”, ressalta.
Para ele, as principais realizações do órgão ao longo de sua atuação foram a fixação do homem no campo e garantir o abastecimento de água em regiões até então dependentes do fornecimento natural. Por conta disso, o órgão chegou a ter 100 mil pessoas contratadas em frentes de serviço para a construção de açudes e barragens. Hoje, segundo o diretor geral do Dnocs, a perspectiva é terceirizar parte dos trabalhos.
“Nosso pessoal técnico trabalha mais no acompanhamento das obras. Terceirizar projetos acaba sendo uma forma mais rápida de realizar ações do que ter um quadro próprio”.
Apesar disso, há carência do que ele chama de quadro básico, como engenheiros e equipes administrativas, que estão definhando à medida que os servidores estão se aposentando. O último concurso público para o órgão foi realizado há cerca de 40 anos. “Nossa proposta era de que fossem abertas 620 vagas, mas só foram liberadas 97 para o concurso que vai ser feito em janeiro. É difícil, no governo anterior chegou-se a propor a extinção do Dnocs, o que não aconteceu por conta da bancada nordestina. Hoje disponibilizamos de R$ 2 bilhões para obras, mas há muito a fazer”.
Autor: Diário do Nordeste