Entre 26 e 30 de outubro, a Universidade de São Paulo (USP) realizaria seu congresso, no qual representantes do corpo discente, docente e funcionários não-docentes discutiriam o modelo de universidade desejada, inclusive pensando novo estatuto. O evento foi abortado por alguns grupos que exigiram a dispensa dos cerca de 15 mil funcionários para participarem das reuniões, com o que a Reitoria não concordou. Na prática, a Reitoria não impediu a participação de ninguém e deu todo o apoio ao evento: transporte, alojamento, alimentação, infra-estrutura para videoconferência e para IPTV, locais (anfiteatro e salas), serviços de impressão. A iniciativa de realizar o evento só pode ser elogiada, pois as universidades são corpos vivos que devem ser aprimorados continuamente para que possam atender aos anseios da sociedade.
Inicialmente estava entusiasmado pelo envolvimento do corpo discente, pois é o maior patrimônio das universidades e a mola propulsora para sua evolução. No entanto, por vários motivos as entidades estudantis acabaram sendo contaminadas pelas associações docentes e de funcionários não-docentes, que têm um passado glorioso, mas há pelo menos duas décadas estão nas mãos dos mesmos grupos, sofrendo pelo longo continuísmo e falta de renovação.
Assim, uma iniciativa louvável estava sendo conduzida de maneira minúscula, intramuros e com forte abordagem corporativa, e acabou sendo interrompida. Uma atitude perversa para o desenvolvimento da instituição.
Os seis temas do congresso cobrem um amplo espectro, incluindo um “plano de luta” para a instalação de estatuinte democrática e soberana. Imaginam-se mudanças profundas, sendo discutidas de forma paritária por representantes de alunos, docentes e funcionários não-docentes. Esses delegados representam um universo de cerca de 100 mil pessoas que se autonomeiam entendidas no tema. Curiosamente, os usuários das atividades de cultura e extensão da universidade foram excluídos. E os demais 99,75% da população de São Paulo, que mantém a USP, devem se contentar com a condição de espectadores passivos. As torres de marfim duramente criticadas no começo do século 20 e que conduziram aos modelos modernos de universidades, inclusive adotados pelas pioneiras do País, como a própria USP, estão sendo reedificadas, agora de uma forma mais conservadora, ousaria dizer pré-humboldtiana, distorcendo a função da universidade na atualidade.
Outro aspecto preocupante, tema principal das discussões preparatórias, é sobre a governança da universidade, principalmente a forma de eleição do(a) reitor(a), e que as decisões devem ser tomadas por comissões paritárias.
Como se o exercício do poder fosse o grande problema da USP. Hoje a tarefa da Reitoria é conseguir conduzir a universidade com parcos recursos. Quem não está familiarizado com a USP precisa saber que cerca de 85% do orçamento é para a folha de pessoal (ativo e aposentado) e o restante para as atividades de custeio. Os recursos extra-orçamentários vêm para atividades específicas, sem passar pela ingerência da Reitoria.
O reitor da USP não tem residência funcional, não recebe cartão corporativo, as diárias de viagens permitem apenas uma conduta espartana e o adicional pecuniário é uma pequena fração do seu salário, insuficiente para os gastos pessoais que tem pelo cargo ocupado. O que o reitor tem é o prestígio pela instituição que representa e pelo cargo até hoje ocupado apenas por grandes lideranças acadêmicas. Além disso, o atual estatuto (1988) já dilui o poder em colegiados constituídos predominantemente pelos docentes, restando pouco poder decisório aos dirigentes. Esse, a meu ver, é o grande problema de gestão da USP. Impede o dinamismo das atividades e prolonga discussões sem as concluir, como as propostas de novos cursos e disciplinas emperradas por anos nas diversas comissões.
Outro ponto muito aventado nas reuniões preparatórias foi o de tornar a USP não só independente do governo estadual, mas do próprio Estado. Pela Constituição, a única ingerência do governador na USP é indicar o reitor de uma lista tríplice preparada pela própria comunidade acadêmica – não paritária, mas liderada pelos professores-titulares. Confunde-se a autonomia acadêmica, essencial para uma universidade de pesquisa com grande competência como a USP, e a autonomia administrativa com a liberdade do docente e da universidade de fazerem o que bem entendem.
Todas as universidades públicas de renome do exterior prestam contas das suas atividades à sociedade. Não me refiro apenas aos aspectos financeiros, nos quais a USP pode ser considerada exemplar, mas a uma prestação de contas qualitativa das atividades desenvolvidas, justificando-as para a comunidade. Neste ponto esbarro em outro dogma vigente, que é a aversão à avaliação continuada eficiente das atividades dos docentes. O concurso público não é um salvo-conduto para o docente, mas uma oportunidade de demonstrar sua competência e garantir a manutenção de suas atividades. A avaliação é instrumento imprescindível para o desenvolvimento da universidade, não para fins punitivos, mas como orientação, válida para funcionários, alunos e docentes, e também para todos os órgãos.
Não tenho a arrogância de apresentar um modelo de universidade, mas gostaria de debater minhas propostas com a sociedade, incluindo a comunidade universitária. Devemos inicialmente definir o que se espera da USP, para então podermos discutir e propor a estrutura mais adequada para atingir esses objetivos e atender aos anseios da sociedade. Lamento, mas acho que estamos priorizando as formas e esquecendo o conteúdo das discussões e do nosso compromisso com a sociedade que nos mantém.
*Vahan Agopyan, professor-titular da Escola Politécnica da USP, representa a universidade como presidente do Conselho Superior do IPEN/Cnen-MCT e conselheiro da Fapesp. Desde fevereiro é o coordenador de C,T&I da Secretaria de Desenvolvimento do Estado de São Paulo
Autor: *Vahan Agopyan