Com meio quilômetro de altura, o Shanghai World Financial Center é o maior prédio da China. Após quatro anos de obras, o edifício será inaugurado nas próximas semanas — mas seu reinado vai durar pouco. Enquanto os operários dão as marretadas finais no 101o andar da construção, logo ao lado estão sendo feitas as fundações de um novo prédio, projetado para ser 90 metros mais alto. O compositor Tom Jobim disse certa vez que a melhor forma de conhecer Nova York era passeando por suas ruas de maca.
Vale o mesmo para a região de Pudong, em Xangai, onde os dois arranha-céus estão sendo construídos. Pudong é a face mais inacreditável do milagre chinês. Até 15 anos atrás, tudo o que havia ali eram campos de arroz e casinhas de madeira. Em 1993, o governo chinês decidiu transformar o que era uma das regiões mais atrasadas do país em seu maior centro financeiro. Assim foi feito. Nesses 15 anos, o governo construiu em Pudong pontes, túneis, dezenas de arranha-céus e um aeroporto ligado ao resto da cidade por um trem-bala que chega a 420 quilômetros por hora.
A ascensão da China nas últimas três décadas gera diversos motivos para estupefação. Mas nada impressiona mais que a capacidade de construir qualquer coisa, de pontes e prédios a cidades inteiras, em tão pouco tempo.
Como eles conseguem? A resposta está num conjunto de simpáticas casas de paredes brancas e tetos azuis na base do Shanghai World Financial Center. Essas casas são um dos traços mais característico da paisagem urbana chinesa.
Estão em cada um dos milhares de canteiros de obras das grandes cidades. É nelas que moram os operários da construção civil. Em outros países, construções são feitas em turnos diários de 8 horas e geralmente interrompidas nos fins de semana.
Na China, as obras não param. O ritmo de trabalho é incessante: 24 horas por dia, sete dias por semana. Os operários fazem as três refeições no canteiro de obras. Não se perde tempo com viagens de ônibus, idas ao supermercado, brigas com a família ou passeios com a namorada. Quem não trabalha dorme. Quem não dorme trabalha. E é a isso que se resume a vida de aproximadamente 200 milhões de chineses.
Esse é o número total de operários migrantes, um grupo que vem das províncias rurais para trabalhar como loucos em fábricas e obras das cidades mais ricas do país. “Os chineses colocam simplesmente o número de pessoas que precisam para acabar as obras rápido”, diz Pol-Henry Cox, presidente da consultoria imobiliária Jones Lang LaSalle em Xangai.
“Eles usam até dez vezes mais gente numa obra do que europeus e americanos.” Os operários migrantes formam uma subclasse. Seus salários não chegam a 1 000 yuans na maioria das cidades do país. Cerca de 250 reais, portanto. Em média, seis deles dormem por turno em cada quarto.
Numa construção visitada por EXAME, quatro trabalhadores se espremiam num contêiner que, ao fim de sua vida útil carregando as exportações chinesas, passou a servir de casa. A China não dá a esses migrantes o direito de morar nas grandes cidades. Quando o prédio ou a ponte que estão construindo acabam, eles têm de procurar outra obra — ou são forçados a voltar para a pobreza da China rural (veja reportagem na pág. 110). Estima-se que mais de 40 milhões deles trabalhem apenas na construção civil.
E, como o número de candidatos a cada vaga é cinco vezes maior, a força está toda do lado das construtoras. Se Wall Street inventou o sistema de remuneração por bônus para estimular o desempenho de seus banqueiros, as construtoras chinesas desenvolveram um plano de incentivo um pouco mais cruel. É comum que os operários só recebam ao final da obra (o que é contra a lei), uma forma de remuneração que estimula a execução do trabalho o mais rápido possível.
Ao fim da construção, hora em que os operários estão exaustos e prestes a perder seu teto, podem receber a seguinte oferta: ou aceitam um pagamento menor que o combinado e trabalham na próxima obra ou estão demitidos — sem salário, emprego ou casa. Uma pesquisa da universidade Tsinghua mostrou que somente 31% dos operários da construção civil recebem seu salário inteiro. “Vim para Xangai porque não fui pago numa obra no sul do país”, diz Yudong An, um migrante de 20 anos que trabalha numa construção às margens do rio Huangpu.
Há histórias escabrosas de trabalhadores que decidiram peitar os empreiteiros e acabaram mortos. No início do ano, um operário que reclamou da falta de pagamento teve a mão esquerda decepada por capangas armados com espadas (três gerentes da construtora foram demitidos em seguida).
Viver sob o domínio da pressa faz a vida dos migrantes particularmente perigosa. A construção civil é, em qualquer lugar, uma atividade de risco.
Na China, porém, faltam cuidados básicos com a segurança. Em 2005, o Ministério da Construção admitiu a morte de 1 195 operários no ano. Os organismos internacionais nutrem ceticismo quanto à exatidão desses números.
Recentemente, o governo anunciou a morte de seis operários nas obras olímpicas de Pequim. Mas isso só aconteceu após uma denúncia do jornal britânico Sunday Times. A qualidade das construções é outra vítima. O escritório de arquitetura americano Jerde, um dos mais conceituados do mundo, estima que um grande projeto em países desenvolvidos leve 40 000 horas de trabalho. Na China, o desespero dos clientes para terminar logo faz com que projetos do mesmo tamanho sejam feitos em 8 000 horas.
Os clientes apressados são principalmente os chefes de província, que vêem na construção de arranha-céus uma forma de chamar a atenção e subir na hierarquia do partido.
O mais recente símbolo dessa busca desenfreada por marcos arquitetônicos é o prédio da televisão estatal chinesa, em Pequim: uma bizarra estrutura, com um buraco no meio, que será concluída em 2008.
Além da multidão de gente disposta a assumir enormes riscos e trabalhar sem parar, há outros fatores que ajudam a turbinar o ritmo de construções na China. Um deles é a rapidez das desapropriações, especialmente no campo.
Segundo um estudo recente, mais de 60% das construções na China envolveram a tomada irregular da propriedade alheia. De acordo com a Universidade de Michigan, apenas um de cada cinco desapropriados é consultado sobre a quantia a ser paga. Quem não aceita o montante oferecido pelos empreiteiros corre o risco de não receber nada. De acordo com a Academia Chinesa de Ciências Sociais, 40 milhões de camponeses foram expulsos de suas casas para abrir espaço para a construção de estradas, e esse número cresce à razão de 2 milhões por ano.
“Nas regiões rurais, não há nem sequer advogados particulares. Todos trabalham para o Estado”, diz Wang Ling, principal sócia do King & Wood, um dos maiores escritórios de advocacia da China. A única esperança de quem quer receber uma indenização maior é causar um escândalo nacional.
Um caso recente ganhou enorme publicidade. Por três anos, um casal resistiu à sanha da construtora que pretendia transformar seu bairro, na cidade de Chongqing, num shopping center. Todos os seus vizinhos acederam, mas o casal agüentou. O marido, professor de kung fu, enfrentava no braço as gangues enviadas para convencê-lo. Os construtores, então, cortaram o fornecimento de água e luz da casa e, para tornar a pressão insuportável, cavaram um enorme buraco à sua volta.
A casa foi demolida no ano passado, mas o casal, que virou celebridade nacional, conseguiu receber uma indenização de quase meio milhão de dólares.
A rapidez das obras é imensamente facilitada por ser a China uma ditadura de partido único. Não há na história um caso sequer de alguém que tenha se sentido prejudicado por uma obra e, com isso, ganhado alguma indenização na Justiça.
O Judiciário, afinal, é diretamente subordinado ao Comitê Central do Partido Comunista. Quando a obra em questão é tida como prioridade pelo governo, o rolo compressor atua de forma ainda mais poderosa. Não há Ibama ou Ministério Público que segure. A construção do terceiro terminal do aeroporto de Pequim é o último exemplo disso. Entre a decisão de construí-lo e sua inauguração, em fevereiro, passaram-se quatro anos. Mais de 50 000 operários participaram das obras.
Os membros do PCC se orgulham em dizer que o governo britânico levou o mesmo tempo apenas para vencer a resistência das famílias afetadas pelo projeto de construir um quinto terminal no aeroporto de Heathrow, em Londres. Na China, não houve discussão.
O governo decidiu e estava decidido. Foi assim também na usina hidrelétrica de Três Gargantas, a maior do mundo. Mais de 1 milhão de pessoas foram deslocadas pela construção, e muitas famílias ainda reclamam da falta de pagamento. Na Índia, um projeto igualmente ambicioso e polêmico está parado na Justiça.
Segundo o professor de Harvard Tarun Khanna em seu recém-lançado livro Billions of Entrepreneurs, a diferença entre os dois países se dá pela forma com que a China e a Índia encaram os direitos individuais. Na Índia, há uma obsessão por proteção aos indivíduos. Na China, o Estado não está nem aí (como disse recentemente um membro do Ministério das Comunicações, “a democracia sacrifica a eficiência”). Isso, escreve Khanna, explica por que a China consegue construir cidades do dia para a noite — e a Índia, não.
O boom de construção na China está umbilicalmente ligado ao crescimento do país. A prioridade máxima do governo chinês nos últimos 30 anos foi fazer a economia crescer da forma mais rápida possível. Para fazer a economia crescer, porém, era preciso atacar o crônico problema de infra-estrutura do país. Em 1989, havia apenas 147 quilômetros de auto-estradas na China. Mas também não havia carros. No ano passado, o número chegou a 45 600 quilômetros.
E a China se tornou o segundo maior mercado do mundo para a indústria automotiva. Até 1993, viajar de avião era tão raro que o passageiro precisava de uma carta de autorização do empregador para comprar um bilhete. Desde então, foram construídos mais de 100 aeroportos no país. O número de passageiros passou de 7 milhões por ano em 1985 para 185 milhões em 2007. Somente entre 2001 e 2005 mais dinheiro foi investido em estradas, aeroportos, pontes e outras construções do que nos 50 anos anteriores — e essa infra-estrutura permitiu à China crescer na velocidade em que cresceu.
Autor: Exame